Digital Health é a solução? Mito ou realidade?

artigo de Luiz Vianna Sobrinho, Professor convidado DIHS/ENSP-Fiocruz, e Carlos Octávio Ocké-Reis, Economista e ex-presidente da associação brasileira de economia da saúde (ABrES)

Para ser uma atividade econômica rentável, o mercado de planos de saúde precisa atingir dois objetivos básicos: acumular capital e radicalizar a seleção de risco.

No entanto, essa lógica não consegue superar uma contradição estrutural do setor: seus custos crescentes provocam preços inacessíveis, que podem inviabilizar seu funcionamento de modo capitalista.

Os subsídios fiscais do Estado resolvem parte desse problema de rentabilidade. Da ótica do mercado, o recente movimento de financeirização, os avanços tecnológicos e à gestão de nichos lucrativos podem também contribuir para suavizar a trajetória dos custos, mas jamais resolvê-lo da perspectiva da saúde pública universal e integral, especialmente se levarmos em conta todo ciclo de vida dos indivíduos.

Por essa razão, na atual conjuntura histórica, os porta-vozes do mercado precisam ideologicamente criar e recriar mitos, para ocultar o fato incontestável de que o mercado (o problema) não é capaz de combater, por exemplo, à tripla carga da doença que assistimos em nosso país, na presença de um Sistema Único de Saúde ‘desfinanciado’ com o aprofundamento da política de austeridade fiscal.

Nesse contexto, precisamos problematizar os caminhos sinuosos que o empresário percorreu , acomodando sua retórica aos seus óbvios interesses econômicos.

Mas antes cabe uma advertência: não comentaremos peças de propaganda explícita, na qual o“mercado” estaria contribuindo para “um mundo de pessoas felizes, saudáveis e bem cuidadas”. Basta observar as consequências da atuação do mercado desregulado estado-unidense, na maior crise sanitária e econômica da nossa geração.

Primeiro, fica claro que o objetivo do artigo é vender a sua empresa, que disponibiliza novas tecnologias digitais. Comenta a vida difícil dos planos de saúde em manter a sustentabilidade de seus negócios, embora confesse que o maior prejudicado tenha sido o “consumidor”.

Ora, essa consequência é diariamente comprovada, mas a premissa inicial é falaciosa: os planos de saúde, por meio do aumento de preços e da redução da sinistralidade – ao expulsar pacientes de alto-risco com comorbidades (“seleção adversa”) – vem apresentando uma expectativa de rentabilidade superior à média da economia brasileira. Cabe destacar ainda a movimentação observada recentemente no mercado financeiro com portentosas aquisições e e a criação de jovens fortunas durante a pandemia da Covid-19.

Segundo, todos sabemos dos custos crescentes na área da saúde, entre outros, dadas a baixa produtividade do trabalho, a incorporação dos insumos e métodos diagnósticos resultantes do boom tecnológico, o seu caráter non-tradable entre os países e o envelhecimento populacional. Durante as últimas décadas, várias ideias se apresentaram como promissoras para intervir nessa escalada de gastos, principalmente em economias de mercado com baixa regulação como no Brasil.

Voltando ao exemplo mais elucidativo (não, por acaso, de onde vem as novidades tecnológicas e de gestão da atenção primária em saúde), as soluções prometidas para frear esse crescimento nos Estados Unidos da América (EUA) não obtiveram grandes resultados. Na década de 1960, considerando seu modelo liberal, a participação dos gastos em saúde girava em torno de 5,2% do PIB, mas, no ano de 1999, já atingia a soma de US$ 1,3 trilhões, correspondendo a 14% do PIB.

Logo após esse período, as promessas dos mecanismos de managed care aliados à nascente medicina baseada em evidência, conduziriam a uma nova rodada de propostas, sempre alegando preocupação com os custos. Chegou-se a US$ 2 trilhões em 2011 (16,2% do PIB) e US$ 3,65 trilhões em 2018 (17,9% do PIB), exatamente no período em que se pretendeu implantar os modelos de gestão baseados em value-delivery.

Esses arranjos e rearranjos da gestão, num sistema de entrega de serviços de saúde baseado na competição da livre iniciativa, que deixa ao mercado o papel principal de determinar suas diretrizes, seja ele conduzido pela meta estruturante da qualidade, seja pelo desfecho de valor, não reverteu a espiral de crescimento de gastos. O lado trágico dessa história: ao longo dessas décadas, apesar do volumoso gasto per capita, esse modelo está vinculado à estrondosa queda das condições de qualidade de vida relacionada à saúde nos EUA.

Na verdade, o poder econômico não pode se comportar de forma diferente dos interesses intrínsecos ao modelo de competição estratégica que domina o mercado de serviços de saúde. Com a implementação de um novo ciclo tecnológico, associado ao desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação, notadamente a Internet das Coisas (IoT) e a Inteligência Artificial (AI & Machine Learn), se anuncia um novo modelo de medicina, que aponta para uma série de novos nichos de mercado e abre fronteiras de acumulação, que têm estimulado o surgimento de milhares de start-ups ao redor do mundo.

No caso brasileiro, podemos inferir, portanto, que o interesse real de muitas promessas e mitos desses players é justamente ser escalado para entrar no pesado jogo do padrão de competição oligopolista que preside esse setor.

Referências consultadas

Ocké-Reis, C.O.; Martins, N.M.; Drach, D.C. Desempenho econômico-financeiro das operadoras líderes do mercado de planos de saúde (2007-2019). Brasília: Ipea, 2021 (Nota Técnica 96).

Sobrinho, L.V. O ocaso da clínica. A medicina de dados. São Paulo: Zagodoni, 2021.