Documento de posição sobre a tríplice epidemia de Zika-Dengue-Chikungunya

Publicado no site do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) 

 

 

 

 

 

Autor:

 

Darci Neves Santos
Estela Maria Leão Aquino
Greice Maria de Souza Menezes
Jairnilson Silva Paim
Lígia Maria Vieira da Silva
Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza
Maria Glória Teixeira
Maurício L. Barreto

 

O objetivo deste documento de posição é apresentar à sociedade brasileira proposições amplas, integrais e intersetoriais acerca da tríplice epidemia de Zika, Dengue e Chikungunya, com recomendações às cidadãs e cidadãos expostos ou acometidos pela maior tragédia da saúde pública desde a catástrofe da talidomida na década de 1950.

Os autores do presente documento não consideram a questão do diagnóstico causal, muitas vezes enfatizada por médicos, mídia, pesquisadores e autoridades sanitárias, como a mais prioritária no momento. Argumentam que diante das evidências acumuladas, intervenções corajosas e potencialmente efetivas devem ser adotadas prontamente, enquanto as instituições de pesquisa produzem novos conhecimentos e desenvolvem tecnologias diagnósticas, assistenciais, preventivas e reabilitadoras adequadas. Portanto, não cabe se limitar a escolher prevenção (“guerra ao Aedes”) ou assistência (às mulheres e cuidado para bebês com lesão cerebral). Trata-se de buscar uma atuação abrangente e consequente, à altura dos desafios dessa grave epidemia, cujas consequências para uma geração de brasileiras e brasileiros ainda são pouco consideradas e conhecidas.

O enfoque para o controle das infecções causadas pelos vírus transmitidos por mosquitos, principalmente o Aedes aegypti, se baseia na redução, eliminação ou erradicação desse vetor, na medida em que só se dispõe de vacina para uso em populações para Febre Amarela. No século passado as campanhas de combate ao vetor tiveram muito sucesso e permitiram eliminar o Aedes aegypti do continente americano e assim erradicar a Febre Amarela Urbana. Com a reemergência do Dengue e ocorrência de epidemias com muitos casos da Febre Hemorrágica do Dengue (década de 1950), muitos países do Sudeste Asiático, onde essas epidemias surgiram, implantaram programas de controle do Aedes aegypti. Um dos exemplos é Singapura, que durante mais de 20 anos conseguiu controlar a ocorrência de dengue mantendo níveis de infestação predial (IP) abaixo de 1%. Contudo, epidemias vêm se sucedendo naquele país (cidade-estado) desde 2005, com incidência e letalidade semelhantes às do Brasil. Cuba mantém um programa exemplar de combate ao Aedes aegypti, mas também vem apresentando epidemias de dengue.

O Brasil desenvolve ações de combate ao Aedes aegypti e também não vem obtendo nenhum sucesso na redução da circulação do vírus do dengue, com epidemias sucessivas dessa doença acontecendo a cada ano. Em 2015, mais de 1,5 milhão de casos foram notificados. Em 2014 houve a emergência de dois vírus também transmitidos por mosquitos do gênero Aedes, o CHIKV (Chikungunya) e o ZIKV (zika vírus).

Muitas são as razões que vêm sendo levantadas para explicar as dificuldades de controle do dengue e das outras viroses transmitidas pelo Aedes, tais como: as ações não são implementadas de acordo com o número de ciclos anuais (6 ou pelo menos 5) preconizado, não alcançando o universo dos domicílios (seja por problemas operacionais afetos às insuficiências dos serviços de saúde, pelas dificuldades de acesso aos domicílios e comunidades, complexidade das malhas urbanas das cidades modernas, etc); a inadequada infraestrutura de saneamento das cidades favorece o acúmulo de lixo e o armazenamento de água para consumo humano em vasilhas e tanques descobertos; a resistência dos vetores aos inseticidas/larvicidas; pouca participação da população; inadequação das estratégias pedagógicas e de comunicação, resultando em pouca mobilização das populações no sentido de manter o ambiente livre de focos do mosquito; dentre muitas outras.

Evidentemente que todas essas afirmativas podem ser consideradas verdadeiras. Contudo, não se pode deixar de reconhecer a existência de lacunas no conhecimento científico vigente. Após mais de um século da descoberta da transmissão vetorial do vírus da febre amarela e de outros agentes infecciosos, a base da tecnologia de controle dos transmissores se mantém praticamente a mesma: destruição de focos que contém ovos e larvas dos mosquitos e, a partir da década de 40 (mais de 70 anos), a incorporação do uso de larvicidas e inseticidas.

Esta estratégia funcionou em um cenário de reduzida densidade urbana onde os habitats dos mosquitos eram passíveis de serem eliminados e/ou tratados. Ademais, o Aedes aegypti vem evidenciando uma grande capacidade para sobreviver mesmo em ambientes onde não dispõe dos criadouros “tradicionais” em abundância. Não são poucos os relatos na literatura científica revelando que, na ausência de criadouros intra e peridomicíliares (depósitos com água sem matéria orgânica), larvas viáveis são encontradas em esgotos (água suja!), caixas telefônicas, ocos de árvores, lajes inclinadas, etc. Ou seja, quando o controle vetorial é bem feito a fêmea faz a oviposição em outros lugares não preferenciais (saltos de oviposição). Esta plasticidade resulta na impossibilidade concreta de eliminação do Aedes aegypti e, mesmo quando o programa de controle é bem conduzido e consegue reduzir os índices de infestação domiciliar, o quantitativo de mosquitos que permanece no meio ambiente ainda possibilita a transmissão do vírus.

A questão que cada vez fica mais evidente é que não basta reduzir a infestação do Aedes aegypti, pois a força de transmissão (medida pela taxa de ataque) desses três arbovírus é muito elevada, mesmo em situações de baixos níveis de infestação vetorial, por ser modulada pelo nível de imunidade de grupo existente em cada espaço, para cada um dos quatro sorotipos do vírus do dengue, em cada cidade. Ademais, em 2014 a população brasileira não possuía nenhuma imunidade (naive) para o CHIKV e ZIKV, ou seja, todos estavam susceptíveis. Infelizmente, as tecnologias disponíveis para combate vetorial, mesmo quando usadas integralmente (manejo integrado), como proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não têm se mostrado muito efetivas.

Tais constatações indicam a necessidade de aprimoramento ou substituição das tecnologias e estratégias de combate vetorial. Os avanços científicos neste campo têm sido insuficientes. Esforços de pesquisa neste sentido vêm sendo conduzidos, a exemplo da infecção de Aedes aegypti por Wolbachia (impede que o mosquito transmita o vírus da dengue) e as modificações genéticas do vetor (mosquitos transgênicos), mas ainda se encontram em estudos experimentais. O desenvolvimento de armadilhas capazes de capturar as formas aladas dos Aedes tem se mostrado bom enquanto indicador entomológico. Embora estas armadilhas retirem do meio ambiente um grande quantitativo de fêmeas, o nível de seroincidência (novas infecções) nos indivíduos que residem em casas com e sem as armadilhas são muito semelhantes (sem diferença estatisticamente significante). Ou seja, parte da população de mosquitos não é suprimida do meio ambiente e continua se reproduzindo suficientemente para manter a transmissão. Consequentemente, outras medidas precisam ser adotadas com bases científicas.

Cumpre continuar propondo a melhoria de condições de saneamento não só tendo em vista que este diminui os criadouros potenciais das formas imaturas do Aedes mas, também, reduz outras doenças de transmissão hídrica. A necessidade do saneamento básico faz parte do discurso técnico e está presente na maioria das publicações científicas a respeito do controle da Dengue. Contudo, são referências genéricas, sem detalhamento sobre o conteúdo do que seriam as ações de saneamento nem da melhor estratégia para a sua operacionalização. Frequentemente são remetidas à população, que passa a ser responsabilizada por medidas que requerem sobretudo o desenvolvimento de ações governamentais. É claro que o envolvimento da população em todas as etapas do planejamento é necessário para o sucesso da empreitada. No entanto, existem ações que são da responsabilidade intransferível dos governos federal, estadual e municipal. Cabe defender a incorporação de novas práticas pedagógicas e de comunicação social em saúde que fortaleçam a consciência sanitária e ecológica e favoreçam mudanças de comportamento da população para reduzir a exposição ao vetor (roupas adequadas, inseticidas, etc.), sem “culpabilização” da mesma pelo que está acontecendo.

A formulação do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), precedida por um amplo diagnóstico sobre a situação do saneamento no país, previu, pela primeira vez, uma atuação articulada voltada para os quatros componentes do saneamento básico: agua, esgoto, drenagem de aguas pluviais e destino adequado aos resíduos sólidos. É uma intervenção complexa que envolve a criação de consenso entre os três níveis governamentais e participação popular. Sua implantação em todo país pode reforçar o controle dessa tríplice epidemia, ao tempo em que configura uma intervenção de promoção da saúde.

No que diz respeito à atenção à saúde, cabe organizar os serviços públicos e privados para o atendimento oportuno e de qualidade das gestantes e das crianças, especialmente nas situações de suspeita ou diagnóstico de Zika e microcefalia. As famílias cujos bebês continuam sendo investigados, ou já receberam confirmação de serem acometidos pela microcefalia ou outra alteração do sistema nervoso central, enfrentam uma experiência inusitada de grande intensidade emocional com repercussões importantes sobre suas dinâmicas familiares. O recém-nascido demanda um cuidado imediato no sentido do engajamento em programas individualizados de estimulação precoce e esta deve ser mantida principalmente nos três primeiros anos de vida, período em que a neuroplasticidade estaria presente para reagir aos estímulos ambientais disponíveis. Ademais, a oferta de serviços em todo período deve contemplar a demanda dos familiares pela centralidade do papel que desempenham enquanto provedores do ambiente social e psicológico capaz de minimizar os danos ao desenvolvimento da criança.

A crise atual de financiamento no setor público, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS), não pode paralisar a Nação perante esta questão, principalmente porque as consequências, associadas ao Zika vírus, dos defeitos congênitos no desenvolvimento infantil perdem a chance de serem minimizadas se a criança e seus familiares não receberem o cuidado adequado na janela de tempo devida. O protagonismo das Universidades Públicas nesta emergência de Saúde Pública, considerando seu corpo de profissionais com conhecimento especializado exigido na temática, é inadiável. A realização de pesquisas, a disponibilização de serviços especializados e o desenvolvimento de estágios curriculares dos últimos anos, além do recurso a categorias de bolsistas para desempenharem ações na rede de Atenção Básica, podem favorecer um engajamento num amplo projeto de Extensão Universitária.

Nesse contexto, nove medidas devem ser reforçadas para o enfrentamento do desafio da tríplice epidemia na situação atual, para além de ações pontuais de eficácia duvidosa.

 

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