Dois artigos discutem as novas regras para as farmácias
Dois artigos publicados no dia 21 de fevereiro no jornal Folha de São Paulo discutem as novas regras para farmácias que entraram em vigor na semana passada. Confira as duas opiniões divergentes sobre o tema.
Saúde é direito, e não simples mercadoria
Dirceu Raposo de Mello e Gustavo Henrique Trindade da Silva
As novas regras para farmácias e drogarias aprovadas em agosto de 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que entraram em vigor nesta semana reacendem um antigo debate na sociedade brasileira: saúde é direito ou simples mercadoria?
De acordo com o regulamento, as farmácias e drogarias terão que cumprir novas regras sanitárias. Alguns medicamentos isentos de prescrição, que apresentam maior risco e necessitam de maior cuidado e orientação de uso, permanecerão atrás do balcão.
A comercialização de outras mercadorias deve atender ao disposto na legislação federal vigente, ou seja, somente podem ser comercializados produtos relacionados com a saúde.
Apesar de mais de dois anos de discussão, do apoio do setor de saúde e de representantes dos consumidores, as medidas têm sido questionadas pelo comércio. A principal crítica? A restrição da venda de mercadorias que nada têm a ver com a saúde e a disponibilidade de medicamentos nas gôndolas nos corredores das farmácias e drogarias.
A falsa imagem de inocuidade, quase divina, que os medicamentos transmitem ao senso comum da população é reforçada tanto pela falta como pela qualidade da informação que chega aos usuários, aliadas à descaracterização das farmácias e drogarias como estabelecimentos de saúde, transformadas em simples atividades de comércio, colocando em risco a saúde da população.
Farmácias não são mercados, e medicamentos são produtos que necessitam de cuidados especiais em sua utilização. Isso precisa ficar claro para a população.
A assistência farmacêutica não se limita à aquisição e distribuição de medicamentos com qualidade, segurança e eficácia garantida pelos fornecedores. Prescrição, dispensação e uso correto dos medicamentos são fatores essenciais para o êxito do tratamento e pressupõem o acesso ao produto adequado para uma finalidade específica, em quantidade, tempo e dosagem suficientes, sob orientação e supervisão farmacêutica.
Nem mesmo os medicamentos isentos de prescrição médica estão livres de riscos. Caso contrário, poderiam ser comercializados nos supermercados ou em feiras, padarias e postos de gasolina, sem orientação ao usuário. Exemplos não faltam.
O acido acetilsalicílico (AAS), quando associado à insulina ou à clorpropamida, por exemplo, pode levar a um quadro de hipoglicemia. Alguns antiácidos podem diminuir a eficácia de antimicrobianos, prejudicando o resultado dos tratamentos. O uso combinado do antimicrobiano ofloxacina com o AAS pode aumentar o risco de ataques convulsivos. O paracetamol, comumente utilizado como analgésico e antitérmico, é um potente agente tóxico para o fígado em doses altas facilmente atingíveis por seu uso indiscriminado.
Ora, se regulamos a propaganda para melhorar a informação e tornar acessíveis ao cidadão orientações seguras para uso de medicamentos, somos tachados de censores. Por outro lado, se viabilizamos alternativas de acesso à informação para além da propaganda, mediante orientação de um profissional de saúde que por lei deve estar na farmácia ou na drogaria, somos autoritários.
A quem efetivamente interessam essas críticas? Será que a simples exposição dos medicamentos nas prateleiras e corredores, verdadeira estratégia logística e de marketing aplicada na venda de mercadorias em geral, garante o acesso livre e seguro a esses produtos? É óbvio que não.
A transformação de farmácias e drogarias em mercados sinaliza a visão que parte do setor tem sobre seu papel na sociedade. É lamentável que um setor de vital importância para a saúde da população esteja numa disputa pela comercialização de balas, sorvetes, bijuterias, chinelos e uma série de outras mercadorias que não possuem nenhuma relação com a proteção e a defesa da saúde. Conveniência é assegurar assistência farmacêutica de qualidade, pois antes do consumidor vem o cidadão.
Dirceu Raposo de Mello é farmacêutico e doutor em análises clínicas pela Unesp, é diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Gustavo Henrique Trindade da Silva é bacharel em direito e especialista em políticas públicas e gestão estratégica da saúde.
Medicamento nunca foi bem de consumo
Sérgio Mena Barreto
Em uma época marcada pelos avanços tecnológicos e pelo pleno acesso à informação, a ANVISA põe o Brasil na contramão do mundo ao tentar impor a resolução 44/09, que proibiria a venda de produtos de conveniência e prestação de serviços nas farmácias, além de retirar os medicamentos isentos de prescrição médica do alcance do consumidor.
A resolução apresenta um ponto ainda mais complexo: em muitos municípios, a farmácia funciona como correspondente bancário, prestando um serviço de grande importância à população que carece de bancos públicos ou privados. Cerca de 15 mil estabelecimentos prestam serviços como o recebimento de contas e entrega dos benefícios da Previdência Social.
Soa estranho a agência colocar os remédios na categoria de bens de consumo e as drogarias na de centro de compras. Segundo a ANVISA, ao comprar um produto de conveniência na farmácia, o consumidor seria influenciado a comprar remédios. Restringir o acesso aos medicamentos isentos de prescrição médica e proibir a venda de alguns produtos na drogaria significa deixar o consumidor refém da falta de opção.
A concorrência que abre um leque de ofertas desapareceria, dando lugar ao monopólio de algumas marcas e acarretando preços mais altos que os atuais.