Drogas: saúde, lei e sociedade

Confira o discurso do assessor do Ministério da Saúde na área de Saúde Mental, Aldo Zaiden, no 1º Congresso Internacional sobre Drogas – Saúde, Lei e Sociedade, realizado em maio de 2013.

“Hoje tomarei a liberdade de detalhar um tema que perpassou quase todas as discussões neste impressionante e belo encontro, que, como dito no primeiro dia, é a verdadeira cúpula que pode iluminar a Esplanada dos Ministérios neste momento.

Na imprensa, já recebemos alguns ataques, mas, sobre isso, gostaria de citar uma frase que o Fernando Morais disse a um amigo ofendido: se elogio em boca própria é vitupério, vitupério em certas bocas é elogio.

Sigamos! Estas declarações reacionárias são prêmios de direitos humanos às avessas. Meus cumprimentos a todos os lutadores presentes.

Bom, para falar nesta mesa sobre direitos humanos no contexto atual, na posição de governo, ou sobre como governos estão lidando com isso e sem ser repetitivo, recorro a uma imagem que me veio há um tempo e que tenho partilhado em alguns espaços: a de um touro em uma tourada.

O touro, este animal poderoso, morre em sua batalha. Por quê? Morre porque se engana. Ele pensa que o que está lhe atacando é a capa e não o toureiro. E enquanto o touro dá suas investidas contra a capa, o toureiro enfia espadas e facas no lombo daquele gigante.

Parece que é assim com a questão das drogas, em muitos casos: ela vira a capa, a cortina que encobre a espada, a adaga da pobreza, dos sofrimentos muito grandes enfrentados pelas pessoas, em especial as mais pobres, mais vulneráveis, e que, portanto, têm os seus direitos mais violados.

O tema específico que escolhi e desejo retomar junto aos senhores diz respeito a esta capa enganosa: são os elementos contidos no PL 7663/2010, dos deputados Osmar Terra e Givaldo Carimbão:

  • O PL dispõe sobre alterações na política e no sistema nacional de drogas. Foi elaborado no âmbito de uma comissão especial, com participação de poucos parlamentares, dispensando os ritos procedimentais do trâmite legal que garantem o conhecimento e amadurecimento de uma proposta no legislativo;
  • Agora o texto está em discussão no governo, com possibilidade de votação nesta semana que começa hoje;
  • As principais novidades da proposta, que chamam atenção para o debate, são, como muitos sabem:

– o endurecimento penal a traficantes, sem, contudo, aprimorar o conceito de diferenciação em relação ao usuário;

– o financiamento de entidades religiosas que realizam o acolhimento a usuários;

– as internações como modo prioritário para tratamento do usuário, sem estarem acompanhadas das garantias dispostas na Lei Antimanicomial, Lei Paulo Delgado, nossa Lei 10.216, de 2001;

– a possibilidade de substituição do familiar por servidores públicos no encaminhamento de internações involuntárias – portanto dispensando autorização judicial, como nos casos de internação compulsória em que não há a presença de familiar.

  • Explico melhor agora as duas últimas observações, questões centrais no campo da saúde e dos direitos humanos. O principal ponto de estrangulamento está justamente no que o PL dispõe sobre internações dos dependentes, que deve obedecer à divisão:

a) internação voluntária: aquela que é consentida pela pessoa a ser internada;

b) internação involuntária: aquela que se dá, sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou, na absoluta falta deste, de servidor púbico que constate a existência de motivos que justifiquem a medida.

  • Considerando que o texto define apenas as internações como modalidade de atenção, excluindo estranhamente as outras formas de cuidados previstas e executadas pelo SUS, tanto no âmbito do serviço público e gratuito, como na rede complementar, a mensagem que se extrai é que as internações passam a ser a medida a ser tomada para a atenção aos usuários e dependentes, e determinadas por qualquer pessoa que prestou um concurso público;
  • Como dito, essa alteração de parâmetros não vem acompanhada dos outros elementos da 10.216/10, lei de garantia de direitos, que especificam a exceção da medida, as salvaguardas necessárias e, sobretudo, o fato desse recurso ser da saúde. Ora! Se for para falar em tratamento nesta proposta, seria necessário mencionar o texto completo da lei de reforma psiquiátrica – não um fragmento perigoso, que nós já temos muita dificuldade em fazer aplicar corretamente;
  • Avalio, como já compartilhado por muitos aqui, que no cenário político atual, a aplicação desta medida, sobretudo no contexto dos centros urbanos, legalizará atos de limpeza social e recolhimento de miseráveis em sofrimento, não promoverá atenção;
  • Pois bem. Cabe brevemente discutir um ponto, que talvez esteja na base da retórica que guia este projeto: as pessoas entendem as internações coercitivas, forçadas, como socorro ou cuidado. 90%, em uma pesquisa do Datafolha se declaram assim recentemente. E toda ponderação que questiona a generalização da medida é tomada como defesa de absurda desassistência, uma desumanidade.  Ocorre que se trata de uma falsa polêmica, ser contra ou a favor das internações involuntárias, já que a medida está prevista na 10.216/10 e dialogará com o seguinte fato: nenhum profissional saúde sério deixará de prestar atendimento emergencial a uma pessoa em situação de risco, avaliadas as condições e salvaguardados os requisitos previstos em lei, nas regulações dos conselhos e portarias concernentes;
  • Assim, o Projeto de Lei, neste ponto, bem como na questão do endurecimento penal que deseja fazer passar, concentra uma disputa política das mais sérias: deixar ou não que estes dispositivos de segurança ou de saúde, estes de delicada aplicação, sirvam para agenciar desejos de recolhimento em massa de pessoas em sofrimento. Não se pode mais convocar a saúde, como já aconteu, para criminalizar a pobreza em tempos de democracia.

Bom, nestas reflexões, a metáfora da capa e do touro tem me retornado, me retomado e me possibilita deslocar o significante do boi para lembrar, neste contexto em que também talvez tenhamos que voltar à luta pela Democracia, de uma canção de Geraldo Vadré, brilhantemente cantada nos duros anos da ditadura brasileira por Jair Rodrigues: Disparada – ” porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente…mas com gente é diferente…”

Então, companheiros, dito tudo isso, é importante chegar a um ponto de finalização da minha fala. Como é de conhecimento público, este PL não foi apoiado pelo Ministério da Saúde e outros Ministérios relacionados, que também se manifestaram oficialmente contrários por meio de notas técnicas. Contudo, há também apoios no Governo.

Muita água vai rolar ainda no debate deste PL, e será necessário o compromisso de todos para garantirmos os melhores e possíveis resultados dessa batalha. Cada um usará dos recursos que dispuser, dentro de suas possibilidades. A discussão ainda deverá ser mantida dentro do Governo, na Câmara, no Senado e, especialmente, na Sociedade.

Me pergunto, sim, se ainda consigo fazer essa disputa dentro do Governo, se não devo sair para fazer o debate aberto. De todo modo, precisamos conter o retrocesso e avançar nessa questão que trata, na verdade, de Democracia.

Muito obrigado”.

* Discurso proferido por Aldo Zaiden durante o 1º Congresso Internacional sobre Drogas – Saúde, Lei e Sociedade, em 05/05/2013, no Museu Nacional da República, Brasília-DF.