Ebola, saúde-carreta e eleições
Por Paulo Capel Narvai.
A epidemia de ebola segue desafiando o governo da Libéria e as ações para detê-la. Com o número de casos aumentando em países da África Ocidental , a epidemia, subestimada por anos, constitui uma ameaça global, não obstante as manifestações de autoridades de vários países contra exageros alarmistas. Se fora de controle, a epidemia representa uma possibilidade real de levar milhões ao óbito, na África e em outros continentes.
O que devem fazer, então, países como o Brasil?
Em editorial na edição deste mês do seu Bulletin of the WHO, a Organização Mundial da Saúde (OMS) assinala que no passado situações como esta foram contidas com a identificação de todos os casos e a adoção oportuna de medidas preventivas. Pondera, contudo, que o sucesso dessa estratégia depende da existência de sistemas de saúde bem organizados, profissionais bem preparados e pagos, adequadamente protegidos e dispostos a trabalhar em situações de alto risco, supervisionados por especialistas em saúde pública, com sólidos conhecimentos e engajamento social, habilitados a gerenciar a evolução da doença em nível populacional, contando com apoio e participação de lideranças comunitárias.
Portanto, para a OMS, o melhor que os países devem fazer para proteger suas populações é organizar bons sistemas de saúde, pois não há vacina para conter o vírus. E medicamentos podem não funcionar. Há ainda que considerar as implicações relacionadas com o uso de agentes biológicos com finalidades bélicas. Na denominada “guerra biológica”, ou quando há bioterrorismo, quem não consegue se defender fica muito vulnerável. Neste caso, longe de ser um problema apenas médico, há implicações relevantes também para a segurança nacional.
Neste cenário, dispor de sistemas de saúde bem organizados equivale a ter a atenção primária à saúde estruturada e funcionando adequadamente, com equipes de saúde bem treinadas e preparadas para fazer vigilância epidemiológica, prevenir e controlar doenças.
Mas, a levar em conta propostas de candidatos de todos os matizes nas eleições em curso no Brasil, nosso sistema público de saúde deveria caminhar em sentido diametralmente oposto. Contrariando frontalmente a recomendação da OMS, nossos candidatos parecem apostar na fragmentação do sistema público de saúde brasileiro, vendo virtudes e qualidades em unidades que segundo eles estarão repletas de especialistas nisso-e-naquilo, sob administração de particulares, e sem participação dos trabalhadores e dos usuários na gestão dessas unidades.
São os candidatos(as) do “teste-disso-e-daquilo”, “do transplante”, “do coração”, “do fígado”, “do rim” e de outras partes supostamente menos cotadas do corpo humano. É vergonhosa e constrangedora a comercialização eleitoral de serviços de saúde que deveriam ser públicos, e cujos cuidados deveriam ser reconhecidos, por lideranças políticas, como um direito social e não um favor desse ou daquele candidato, dessa ou daquela coligação partidária.
A indigência do debate sobre as políticas públicas de saúde parece remeter ao período pré-Constituição de 1988, pré-SUS. E não nos faltam questões relevantes a debater, como por exemplo, os caminhos que o SUS vem trilhando no esforço de reorganizar a atenção básica em todo País. Ainda que haja registro de várias experiências bem sucedidas em muitos municípios, no enfrentamento de epidemias como cólera e dengue, dentre outras, com base na estratégia da Saúde da Família, é inegável que o Brasil vem tendo problemas com o financiamento e a organização da atenção primária, pressionado pela ênfase em hospitais e a ampliação sem precedentes de planos de saúde privados de eficácia sanitária altamente questionável.
Levando em conta o que candidatos têm dito nos programas eleitorais, não resta a menor dúvida de que corremos o sério risco de ter de trilhar caminho oposto ao recomendado pela OMS e não dar a devida ênfase à organização do nosso sistema público, o SUS, que, vale assinalar, segue alocando os recursos da saúde prioritariamente às unidades hospitalares, em detrimento da atenção primária, que conta com menos de 15% desses recursos. Por décadas os valores destinados a atenção primária à saúde vêm sendo, em nosso País, inversamente proporcionais à quantidade de discursos sobre sua importância.
Vários analistas da saúde são enfáticos ao afirmar que, entre nós, intensifica-se perigosamente a fragilização da atenção primária, que vem sendo substituída, de modo sanitariamente irresponsável, por opções como a denominada “saúde-carreta” que consiste, basicamente, em ofertar assistência com base em procedimentos demandados como consumo de tecnologias equipamento-dependentes, de modo aleatório e sem base programática, em vans e caminhões nos quais operam profissionais com vínculos e condições trabalhistas precários.
Embora não haja qualquer evidência científica do impacto epidemiológico dessa estratégia “saúde-carreta”, tais ações vêm sendo desenvolvidas em detrimento de outras de comprovada eficácia sanitária, apenas para atender imperativos de marketing político-eleitoral, fazendo do cuidado de saúde mera mercadoria, trocada por votos. Não raro, vans e caminhões permanecem sem uso por semanas e meses, em razão de problemas que vão da falta de motorista ou de combustível à quebra de equipamento. Mas a carreta lá está: um verdadeiro outdoor publicitário em concorrido vale-tudo por votos.
Preocupa, sobretudo, o apoio entusiasmado que candidatos de todos os matizes políticos-ideológicos vêm dedicando a essa “estratégia sanitária” nas eleições em curso. Não se fala em qualificar os serviços do SUS, ou seja, em aprofundar sua organização e promover a educação permanente do pessoal, profissionalizá-lo nos moldes preconizados pela OMS, instituindo planos de cargos, carreiras e salários definidos democraticamente, mas em “carreta-da-mulher”, “mutirão-da-catarata”, “van-do-dentista”, “caminhão-do-idoso” e mágicas similares.
Avançando na perspectiva de desconstruir o SUS e se afastando do ideário do trabalho decente na saúde, o Brasil da saúde-carreta parece desprezar, de modo inconsequente, as ideias de Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Sérgio Arouca e tantos outros(as).
Preocupa muito que os programas de saúde de candidatos aos mais diferentes mandatos, à esquerda e à direita do espectro partidário, pareçam expressar não o pensamento de sanitaristas, mas as criações, por vezes infantis, de outros tipos de especialistas, os publicitários que se dedicam ao marketing eleitoral. Se vírus, bactérias e outros bichos e microbichos pudessem escolher, agradeceriam. A indústria farmacêutica, esta nem precisa agradecer.
Paulo Capel Narvai é Doutor em Saúde Pública e Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP).