Editorial da Saúde em Debate, volume 47, número 139 aborda a ameaça da reforma tributária ao financiamento da Saúde
O editorial A reforma tributária e a saúde. Afinal, para que pagamos impostos e a quem eles servem? de Francisco Funcia e José Noronha, publicado na Saúde em Debate, volume 47, número 139, aborda a reforma tributária em andamento nesse terceiro mandato de Lula na presidência da República. Os autores enfatizam a necessidade de uma abordagem fiscal mais justa, com uma reforma tributária que considere a tributação sobre patrimônio e renda. Também destaca a importância da participação da sociedade na busca por um Brasil mais igualitário. Acesse aqui a Saúde em Debate e veja aqui o sumário da publicação. Leia a seguir o editorial.
A reforma tributária e a saúde. Afinal, para que pagamos impostos e a quem eles servem?
Francisco Funcia1,2, José Noronha2,3
- Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
- Conselho Nacional de Saúde (CNS), Comissão de Orçamento e Financiamento – Brasília (DF), Brasil.
- Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
“PREFIRO QUE AS PESSOAS CONTINUEM PASSANDO FOME para comprar remédio por que não dá para aumentar o gasto em social no Brasil?” – essa é a pergunta instigante que o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Medeiros1, lança para nossa reflexão. Considerando a abordagem do pesquisador, é possível deduzir que a sociedade tem arcado com um custo decorrente de decisões políticas que têm restringido a expansão de serviços das áreas sociais, cujo benefício alcançaria a maioria da população, para cumprir metas fiscais.
Em outros termos, faz tempo que a política fiscal deixou de ser um instrumento promotor de redistribuição de renda e riqueza no Brasil, quer em termos do papel do gasto público para estimular a atividade econômica e gerar emprego e renda, quer em termos do papel que pode ser desempenhado pela tributação – ampliando a carga sobre o patrimônio, a renda e a riqueza dos 10% mais ricos (e promovendo ajustes que reduzam a evasão fiscal e aumentem a progressividade) e, ao mesmo, reduzindo a carga sobre a produção e o consumo (que desrespeita a capacidade de pagamento dos contribuintes e, por isso, regressiva).
O que tem ocorrido no Brasil é exatamente o inverso nos últimos anos: a prioridade tem sido o ajuste fiscal sacrificando os gastos sociais e, consequentemente, a maioria da população, condicionando a política fiscal à política monetária por meio de taxas de juros elevadas e tratando a tributação apenas como meio de obter mais receita para ‘zerar’ o déficit público.
A justificativa que tem sido adotada para isso é que ‘falta dinheiro’ para financiar as políticas públicas e que ‘déficits públicos’ são prejudiciais para a economia porque ‘aumentam as incertezas’ e ‘deterioram as expectativas’ do mercado. Por isso, seria preciso reduzir as despesas públicas, porque, do contrário, seria preciso aumentar impostos, sendo que o aumento da tributação sobre patrimônio, renda e riqueza poderia resultar em uma ‘fuga de capitais’ do Brasil. Entretanto, a pressão fiscal exercida pela elevada taxa básica de juros mantida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) por muitos meses, com recentes reduções ainda tímidas, não é ressaltada pelo mercado, pois expressa o ganho financeiro dos rentistas, cujos interesses, inclusive, estão fortemente representados pelo Congresso Nacional.
Infelizmente, essa visão tem predominado, é verdade que em graus diferentes, na área econômica dos diferentes governos brasileiros nas últimas décadas. Em 2023, as agendas das reformas tributária e fiscal ganharam prioridade neste primeiro ano do novo governo federal, sob a coordenação do Ministério da Fazenda e do Ministério do Planejamento. Quais são os objetivos dessas reformas e quais são os impactos para o financiamento da seguridade social e do Sistema Único de Saúde (SUS)?
A reforma fiscal priorizou a substituição do teto das despesas primárias, congelado nos níveis de 2016 pela Emenda Constitucional nº 95, por outra regra com pequeno grau de flexibilidade para o crescimento das despesas – nunca inferior a 0,6% ao ano e nunca superior a 2,5% ao ano (com algumas exceções), conforme aprovada no mês passado pela Lei Complementar nº 200/2023 (esclarecedora a contribuição de Batos, Deccache e Alves Jr2).
Como os gastos com saúde e educação apresentam a obrigação de cumprir pisos (aplicações mínimas) constitucionalmente vinculados à receita, essas despesas consumirão boa parte daquele limite máximo estabelecido, reduzindo o espaço fiscal para o crescimento de outras despesas – sobre isso, alguns representantes da área econômica do governo têm se manifestado pela necessidade de revisar tais vinculações, bem como da importância de aprovar a reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional, para possibilitar um aumento de receita decorrente da simplificação tributária, porque esta permitiria estimular a atividade econômica.
Reproduz-se com isso a interpretação distorcida da realidade e do papel dos gastos sociais e da tributação, a saber: de um lado, o aumento do gasto social não contribui para ampliar a dinâmica econômica nem para gerar emprego e renda na economia; de outro, o aumento da tributação, especialmente sobre patrimônio, renda e riqueza, não promove redistribuição de renda e redução das desigualdades sociais. Ambos somente podem servir para atender ao objetivo do equilíbrio das contas públicas, mais precisamente, para a geração de superávits primários capazes de suportar os encargos da dívida pública.
Nem as evidências recentes são suficientes para romper com essa lógica da austeridade fiscal ainda presente na política econômica: é importante destacar que o Brasil teve uma ampliação da despesa primária com queda da receita primária em 2020 (o primeiro ano da pandemia), portanto, gerando déficit primário, e o País não se tornou insolvente. Afinal, o endividamento público brasileiro está em moeda local, o que permite a rolagem da dívida federal com a emissão de novos títulos da dívida pública.
É oportuno ressaltar que a esfera federal de governo é aquela que tem competência constitucional para financiar as políticas públicas para além do equilíbrio das contas públicas, por exemplo, emitindo títulos da dívida pública e emitindo moeda. Compete ao governo federal propor uma política econômica que combine a responsabilidade fiscal com as prioridades sociais e com os diferentes instrumentos de financiamento, como estabelece o art. 196 da Constituição Federal.
Por sua vez, a reforma tributária deveria atender principalmente ao objetivo de propiciar a distribuição de renda e de reduzir a pobreza, bem como de promover a justiça tributária por meio do respeito à capacidade contributiva. Para isso, a reforma tributária deveria priorizar as mudanças na tributação sobre patrimônio, renda e riqueza, de modo que representem a maior parte da carga tributária, em obediência ao princípio da progressividade.
É preciso considerar, contudo, que seria preciso uma correlação de forças políticas diferente daquela que o atual governo tem no Congresso Nacional. Essa pode ser a explicação de por que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da reforma tributária, atualmente em tramitação no Legislativo, trata tão somente da substituição de vários tributos que incidem sobre a produção e o consumo – Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de competência federal, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual, e Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), de competência municipal – por dois novos tributos, um imposto sobre bens e serviços (estadual e municipal) e uma contribuição sobre bens e serviços (federal).
Dessa forma, trata-se de uma reforma tributária que apresenta uma contradição ao tentar uma conciliação política: de um lado, possibilita cumprir o princípio da simplificação, capaz de estimular a atividade econômica; de outro, não resolve o problema da regressividade existente atualmente – tributos sobre produção e consumo oneram mais os contribuintes de baixa renda comparativamente aos de alta renda.
A expectativa governamental é que ocorra crescimento econômico como decorrência dessa simplificação tributária, o que resultaria (sem reduzir a injustiça na tributação dado o caráter regressivo dos tributos atingidos por essa reforma) no aumento da receita federal e na geração de emprego e renda que reduziria parcialmente a desigualdade socioeconômica.
Nesse contexto, as reformas tributárias (em tramitação no Congresso Nacional) e fiscal (aprovada com a Lei Complementar nº 200/2023) são complementares entre si, priorizando o ajuste fiscal. Pelas manifestações públicas de autoridades da área econômica, a necessidade de cumprimento das novas regras fiscais a partir de 2024 está colocando em risco a manutenção dos pisos constitucionais da saúde e da educação, que estão vinculados à receita, considerando a programação de despesas de outras áreas sociais.
Esse tema foi antecipado pela anunciada consulta que o Ministério da Fazenda fez ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a obrigatoriedade do cumprimento do piso constitucional da saúde (15% da receita corrente líquida da União de 2023, art. 198 com redação dada pela Emenda Constitucional nº 86/2015), após a aprovação do novo arcabouço fiscal pela Lei Complementar nº 200/2023. Nessa mesma direção (desconsiderar como aplicação obrigatória em 2023 o valor do piso federal do SUS definido na Constituição Federal como sendo 15% da receita corrente líquida do exercício), o art. 15 do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 136 recentemente aprovado pelo Congresso Nacional estabeleceu que, para 2023, a receita corrente líquida a ser considerada é a estimada na Lei Orçamentária do exercício, cujo valor está menor que a projeção atualizada. Em ambos os casos, há um debate sendo travado envolvendo principalmente especialistas em economia da saúde e direito sanitário sobre a possibilidade de alteração da regra do piso federal do SUS fixada na Constituição Federal pelo TCU e por meio de Lei Complementar.
Quanto à reforma tributária, está sendo desconsiderado o orçamento da seguridade social com a forma adotada de unificação de tributos federais, o que, na prática, inviabiliza a manutenção desse orçamento conquistado na Constituição Federal de 1988.
Recente estudo coordenado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), intitulado ‘Nova Política de Financiamento do SUS’3, apresentou propostas concretas para viabilizar recursos adicionais para as políticas sociais em geral e para o SUS em especial: uma nova regra fiscal compatível com espaço orçamentário para “gastos relevantes e transformadores, com forte efeito multiplicador e redistributivo”3 em combinação com a ampliação da
[…] progressividade do sistema tributário, taxando renda, patrimônio e riqueza financeira (Imposto de Renda sobre lucros e dividendos e Imposto sobre Grandes Fortunas), bem como rever os gastos tributários em saúde (teto das renúncias de saúde no IRPF)3.
É oportuno informar que esse estudo da ABrES foi apresentado e amplamente debatido em 2022, inclusive com o Conselho Nacional de Saúde e com a Frente pela Vida, que manifestaram apoio à abordagem e à linha geral adotada nesse estudo. O debate e o diálogo com o controle social do SUS e com as entidades e movimentos da reforma sanitária e de defesa do SUS deveriam ser a metodologia norteadora para área econômica governamental e o Congresso Nacional neste momento, em que está tramitando a PEC da Reforma Tributária.
Até o momento, entretanto, apenas têm caminhado as propostas de simplificação tributária, embora ainda sem definição clara de alíquotas e isenções. Uma questão que se arrasta desde a Constituinte de 1988 e continua imune é a vinculação de contribuições sobre a folha para financiar o Sistema S (Sesc, Senac, Sesi, Senai, Sebrae), ‘contribuição sindical patronal’ não explícita), mesmo quando se discutem prorrogações sobre desoneração da folha de salários.
São bastante tímidas, e alvo de intensa pressão midiática e parlamentar, as iniciativas de tributação dos super-ricos4. É verdade que já ganhou espaço a taxação de fundos exclusivos e offshores, mas ainda persiste debate sobre as alíquotas. O debate sobre a taxação de lucros e dividendos vai sendo postergada bem como a revisão para expansão de alíquotas maiores para rendas maiores e das renúncias hoje autorizadas.
Enfim, é preciso desfazer com vigor o mito de que não há dinheiro para financiar as políticas públicas e garantir as vinculações constitucionais para Saúde e Educação. Além disso, enfrentar a brutal regressividade de nosso sistema tributário para, de fato, reduzir nossas cruéis desigualdades. Para isso, é preciso mobilizar a sociedade, ativar a participação social e incrementar os vários mecanismos de pressão política para, depois da reconstrução, construirmos um Brasil mais justo e solidário.
Referências
- Medeiros M, Almeida C. ‘Sem os 10% mais ricos, Brasil seria um país igualitário’, diz autor de novo livro sobre desigualdade. O Globo. 2023 out 18. [acesso em 2023 out 22]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/10/18/sem-os-10percent-mais-ricos-brasil-seria-um-pais-igualitario-diz–autor-de-novo-livro-sobre-desigualdade.ghtml.
- Bastos PPZ, Deccache D, Alves Jr AJ. O novo regime fiscal restringirá a retomada do desenvolvimento em 2024? Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia; 2023. [acesso em 2023 22 out]. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/nota-cecon/bastos-p-deccache-d–alves-jr-a-2023-o-novo-regime-fiscal-restringira-a–retomada-do-desenvolvimento-em-2024-cecon-ie–unicamp-nota-23-outubro-2023.pdf.
- Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES). Nova política de financiamento do SUS. Nota Política Econômica. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia; 2022 set. [acesso em 2023 out 22]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf.
- Oxfam Brasil. A “sobrevivência” do mais rico. 2023. [acesso em 2023 out 22]. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/a-sobrevivencia-do-mais-rico/.