Eleutério: a ausência presente

*Por Ana Costa

Assim como outras diversas lideranças no campo da saúde coletiva nacional, Eleutério formou-se médico pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB). A universidade de vanguarda criada por Darcy Ribeiro ofereceu uma formação em medicina integral que é inspiradora até os dias de hoje. Caso sobrevivesse naquele modelo vencido pela saga fragmentadora e hospitalar, pouco teria a adaptar às Diretrizes Curriculares recém-nascidas para perseguir na busca de alternativas de formação do médico ideal para a saúde e o povo brasileiro.

Introduzo assim minha homenagem ao Eleutério por ter sido pela retomada desse modelo para a medicina da UnB uma de suas últimas lutas. Estivemos juntos ali tentando convencer que a formação de medicina precisava sair dos muros dos hospitais, envolver outras disciplinas, promover integração com comunidades e assumir o destino que a população dela espera e necessita.

Mas os “doutores” deram de costas convencidos que médico precisa mesmo é saber da doença, não da saúde. Sofremos juntos a separação da medicina das demais ciências da saúde , reconhecendo que ali, com o deslocamento da medicina, ficavam enterradas as esperanças de uma retomada do que fora nossa universidade, nossa formação médica comprometida com a população e iluminada por tantos mestres como Luis Carlos Lobo, Henri Jouval, Antonio Lisboa, Agostini Aventino , Pablo Chacel semeadores de uma visão ampliada e integrada na compreensão da função social da medicina e abordagem do processo saúde-doença.

Se perdemos ai uma batalha, Eleutério comandou outras grandes lutas vitoriosas. Militante permanente e dedicado na defesa do direito universal à saúde, ele teve papel fundamental na Reforma Sanitária , desde os seus primórdios. Formulador e articulador, transitou entre diversas instituições e lugares, tecendo estratégias para a instalação das mudanças ou reformas necessárias para o setor.

Participou da criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e foi presidente da entidade entre 1980/1981 e outra vez em 1991/1993 e vice-presidente na gestão 1994/1996. Em 1986 passou a integrar seu Conselho Consultivo. Foi membro do Conselho Editorial da Revista do CEBES de 1987 a 1991. Também foi vice-presidente da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), gestão 1986/1987.

Esteve trabalhando no INAMPS onde teve importante atuação na formulação das AIS (Ações Integradas de Saúde) e, de lá foi para o Ministério da Saúde como secretário-geral do Ministro Carlos Santana do PMDB baiano. Carlos, que era casado com a médica sanitarista Fabiola Aguiar, convidou Eleutério ao posto naquele primeiro governo democrático após os longos anos de chumbo e isso contou muito para nós da Reforma Sanitária pois tratava-se de um legítimo militante de esquerda.

Configurou-se uma conjunção favorável de poderes estratégicos ocupados por militantes da reforma da saúde, particularmente com Hésio Cordeiro como Presidente do INAMPS , Arouca na presidência da Fiocruz e Eleutério no Ministério da Saúde. Na Saúde, Eleutério foi o responsável por todo o processo de concepção e organização da VIII Conferência Nacional de Saúde presidida por Arouca, já que ele foi secretário até as vésperas da sua etapa nacional.

Dali também, em conjunto com Arouca e Hésio, articularam por uma rede de resistência e fortalecimento do pensamento, formação e produção do conhecimento para a reforma sanitária no interior das universidades, criando a rede dos núcleos de saúde publica. Estes núcleos foram formalmente apoiados e financiados pelo INAMPS, Ministério e pela Fiocruz. Pouco mais tarde, com Eleutério na coordenação do Núcleo de Estudos de Saúde Publica da UNB (NESP), ele passa a ser o grande articulador da mobilização e formulação em saúde para a Assembleia Nacional Constituinte.

É quem também que registra o processo e os resultados da discussão da questão da saúde na Assembleia Nacional constituinte, nos anos de 1987 e 1988, os diferentes atores, projetos, coalizões e alianças. Eleutério não parava nunca e também não esgotavam suas estratégias e esperanças, mesmo que baseado em analises realísticas e duras sobre a situação politica nacional como quando analisou a vitoriosa correlação de forças existentes na Constituinte na qual as propostas do Movimento da Reforma Sanitária confrontavam com as que eram defendidas pelos setores ligados à iniciativa privada através do chamado ‘Centrão’.

Ao longo dos anos noventa, enquanto sua brilhante inteligência ainda não havia sido corroída pela doença que o levou, analisava com preocupação os rumos da saúde nos tempos liberais do período pós-constituinte alertando sobre a necessidade de uma agenda estratégica para a implementação da Reforma Sanitária e do Sistema Único de Saúde (SUS), denunciando o afastamento do SUS em relação à seus princípios e propostas originais da Reforma Sanitária.

Me lembro de uma vez irmos juntos ao Ministério de Bresser Pereira tentar diálogo sobre as reformas que vinham sendo propostas e realizadas, pelas repercussões para o campo da saúde. Nunca mais fomos chamados de volta…

Os sentidos dos projetos aos quais Eleutério nos convocava, eram sempre convergentes à consolidação da Reforma Sanitária e do SUS, seja na rede de escolas de governo para a saúde, seja no que analisava como “pedra do sapato do SUS que são os hospitais universitários” ou na produção de conhecimentos direcionadas às necessidades de saúde…

Sobre a Reforma Sanitária e o SUS, Eleutério sempre chamava atenção que deveriam ser considerados objetos distintos. E repetia em escritos, falas e conversas, antevendo a simplificação e reducionismo da luta pelo direito à saúde : a reforma sanitária não se resume ao SUS. É muito mais e envolve além da democracia ampla, politicas sociais intersetoriais, outra concepção e projeto de estado com politicas econômicas centradas na qualidade de vida das pessoas..

Já sobre o SUS precocemente anteviu e nos advertiu que haviam “equívocos na sua condução pois o SUS tem que ser único e o setor publico deve controlar o privado, ter governabilidade sobre ele. O sistema é único por isso e para isto”, insistia.

Minhas memórias do Eleutério não se resumem entretanto ao seu legado político e intelectual. O rombo da sua retirada me deixou solitária nesse planalto central, naqueles tempos e contextos nada confortáveis em que se faziam essenciais, para resistir, a convivência e os sonhos compartilhados…

Foi embora o amigo leal, das idas ao cinema, jantares divertidos com boa comida, vinhos e ideias de mudar o mundo e revirar a cabeça, conversas infindáveis, livros, projetos, bolos de natal, aniversários, charutos, conhaques. Ficaram as lembranças, mais que isso, ficou tudo que dele pude ter. Drummond escreveu sobre a “ausência” em um poema que supostamente fala de uma amiga morta, o qual transcrevo por traduzir esse Eleutério assimilado e com o qual converso cotidianamente:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.”

 

*Ana Maria Costa é médica e presidenta do Cebes