Entrevista: Marcelo Semer
A entrevista que segue foi concedida ao Portal Sul 21, após a publicação do artigo “Moderno reacionário é porta de entrada para o velho fascismo”, aceitando a sugestão da Vivian Virissimo, para explicitar certos pontos.
Vivian Virissimo
Juiz de Direito em São Paulo e ex-presidente da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Marcelo Semer vem alertando que a incorporação de direitos civis no Brasil, como a recente aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, vem sendo acompanhada pelo aumento do preconceito. Ele alerta para uma aparente tendência, entre colunistas de jornal, humoristas e políticos, de combater o chamado “politicamente correto”.
“Ficou moderninho combater o ‘politicamente correto’; mas na toada, vão debulhar a dignidade humana”, afirma.
Semer concedeu uma entrevista por e-mail ao Sul21, na qual amplia a discussão trazida em seu artigo publicado nesta semana pelo Terra Magazine, com o título “O moderno reacionário é a porta de entrada do velho fascismo”. “A ideia de que sou livre em pensamento, quando não devo tributo a nada, é perigosa. Em alguns casos, por imprudência, fazem a defesa do racismo; em outros por má-fé assentam o caminho para o autoritarismo”, diz o juiz.
Semer também é escritor e blogueiro. Além da coluna no Terra Magazine, ele atualiza o blog Sem Juízo.
Sul21 – Em artigo de sua autoria, o senhor aborda a tendência crescente de reacionarismo e fascismo na sociedade brasileira. Poderia exemplificar e comentar fatos que se tornaram públicos recentemente e que atestam sua tese?
Marcelo Semer – O que se tem percebido é o aumento do preconceito, em resposta à incorporação de direitos civis (exemplo típico da homofobia), como uma forma de reação. O mesmo ocorre com a ascensão social: a reação de quem quer ser o porta-voz da classe média. Então vem essa conversa de que aeroportos são como rodoviárias, o trânsito aumentou porque pobres compram carro fácil e etc. No limite, é o mesmo reclamo da xenofobia europeia: os imigrantes querem tomar nossos empregos. Em São Paulo, um movimento chamado “São Paulo para os Paulistas” lançou documento que poderia, em quase tudo, ser atribuído à pregação hitlerista. Nas depressões aumenta o preconceito, na ascensão social idem. A reação do sul-sudeste aos resultados da eleição, como se nordestinos fossem “culpados”, é um exemplo claro.
Sul21 – Esses traços estão sendo apropriados por alguns políticos que parecem ter encontrado um “nicho” de eleitores conservadores e têm propagado preconceitos que desrespeitam preceitos constitucionais. Como o senhor avalia esta questão?
Marcelo Semer – A intromissão da questão religiosa no debate eleitoral foi uma senha. Como nos Estados Unidos, setores ultraconservadores abrem mão de discutir política para discutir moral, com o que é mais fácil disseminar o medo. A porta foi aberta e dentro dela navegam os extremistas, que flutuam melhor no arcaico debate moral. Abrir espaço para o extremista, como se ele fosse um folclórico (desejo de audiência) ou garantir a todos o direito ao racismo é um equívoco brutal. A Constituição não é feita de um único artigo e não se restringe à liberdade de expressão. O ministro Celso de Mello explicou muito bem isso no voto do julgamento da Marcha da Maconha: estimular o ódio e o racismo não está garantido pela Constituição.
Sul21 – Na sua avaliação, quais seriam as conseqüências para o Estado laico quando ocorre a instrumentalização do discurso religioso por políticos?
Marcelo Semer – A instrumentalização do debate religioso na política é um duro golpe ao Estado laico. É dizer que as pessoas devem fazer suas escolhas políticas baseadas nas crenças (sobre as ações de governo); no limite, tende ao preconceito (não aceito quem não tem a mesma crença) e depois a perseguição. É algo que certamente não precisamos em um país com histórico de tolerância religiosa. Digo mais: é um caminho sem volta.
Sul21 – Qual sua opinião a respeito dessa tendência de que a liberdade de expressão fique acima do respeito ao outro, autorizando qualquer tipo de desrespeito aos direitos humanos? Quais seriam as conseqüências desta postura para a banalização da violência?
Marcelo Semer – Um erro sem precedentes. Liberdade de expressão não é ilimitada. O respeito à dignidade humana e o princípio da igualdade não podem ser fulminados. Democracia não é só governo da maioria; é também respeito irrestrito às minorias, ao ser humano, enfim.
Sul21 – No artigo o senhor comenta rapidamente sobre os “neo-machistas intelectuais”, que traços são reconhecidos nestes tipos?
Marcelo Semer – O combate à ideia da igualdade que duramente vem sendo conquistada. Ficou moderninho combater o ‘politicamente correto’; mas na toada, vão debulhar a dignidade humana. Dizer que amamentar em público é como defecar; ou que a mulher precisa ser tratada como objeto, dito por intelectuais representa o quê?
Sul21 – Gostaria também que o senhor falasse mais sobre o “intelectual sem amarras”. Que tipo de comportamento teria esse intelectual?
Marcelo Semer – Tipo que está virando tendência: fulmina o que afirma ser o senso comum, como pretexto de liberdade e serve à destruição dos patamares mínimos de convivência e dignidade. Se tudo é permitido, nada deve ser preservado, tampouco a democracia vai se mostrar imprescindível. A ideia de que sou livre em pensamento, quando não devo tributo a nada, é perigosa. Em alguns casos, por imprudência, fazem a defesa do racismo; em outros por má-fé assentam o caminho para o autoritarismo.
45 anos, juiz de direito em São Paulo e escritor. Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, autor do romance “Certas Canções”. Colunista no Terra Magazine.
Imagem: Marcha das Vadias – Rio de Janeiro (02 de julho/2011)