Especialistas em saúde apontam prejuízo para a seguridade social com o ajuste fiscal
A decisão do governo de preservar o Piso Constitucional da Saúde dos cortes de gastos do ajuste fiscal foi comemorada por movimentos que atuam na área. A preocupação deles agora é com eventuais prejuízos causados pelas medidas em discussão na Câmara para a seguridade social. Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que o pacote fiscal anunciado pelo governo suaviza impactos sociais, após meses de especulações e disputa política sobre os cortes de gastos. Em nota, a Frente pela Vida, que reúne entidades em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), declarou apoio às medidas para a Saúde e defendeu a preservação da seguridade social.
Para o economista Francisco Funcia, da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), há uma disputa aberta entre o projeto Estado mínimo e o projeto constitucional de cidadania, calcado em direitos sociais. “O governo avançou em uma proposta que busca o equilíbrio. Combinou medidas de redução de gastos e de aumento de receita, preservando os direitos a Saúde e a Educação, em uma correlação de forças desfavorável”, avalia Funcia.
Medidas como redução das renúncias fiscais – que alcançou R$ 790 bilhões em 2024, segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais –, o aumento de Imposto de Renda para quem recebe mais de R$ 50 mil, e a reforma da Previdência dos militares sinalizam uma agenda de transformação estrutural, na avaliação de Carlos Ocké, integrante do Cebes e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “O presidente Lula fez um recuo tático, mas não se rendeu à chantagem da Faria Lima”, analisa.
“Podemos comemorar [a manutenção do Piso da Saúde] porque estamos na trincheira de luta contra esses cortes desde a formulação do novo arcabouço fiscal”, afirma Iola Gurgel, professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e líder do Grupo de Pesquisa em Economia da Saúde (GPES/UFMG). “Mas, mesmo que pacote não tenha feito o que seria um ataque histórico ao direito constitucional à Saúde, outros benefícios foram afetados”, pondera Iola.
O Congresso Nacional corre para votar as medidas na próxima semana, antes do recesso parlamentar.
Seguridade Social na mira
A redução do ritmo de crescimento do salário mínimo e endurecimento das normas para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) trazem prejuízos de médio prazo aos mais pobres, reconhecem os economistas. O aumento de juros na última quarta-feira (11), vai pulverizar a economia orçamentária gerada pela redução do ritmo de crescimento do salário mínimo. O Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central anunciou aumento da taxa Selic, de 11,25% ao ano para 12,25%.
“Uma outra medida pouco comentada do pacote atual é que ele retoma a desvinculação de recursos da União para a Seguridade Social, que vem sendo atacada desde sua criação. Desde 1994, o governo começou a retirar uma parte desse orçamento para suplementar o orçamento fiscal. O pacote restabelece essa lógica desvinculação pelos próximos 8 anos, com retirada de recursos de ordem de 30% do orçamento da seguridade para gastos fiscais. É a primeira vez que se aplica essa alíquota de 30%, votada em 2016. Isso pode ser reproduzido nos orçamentos municipais e federais. Então teremos, sim, uma redução de receitas”, critica Iola.
Disputa está apenas começando
A implementação do pacote do governo exige a aprovação de proposta de emenda à Constituição (PEC) e projeto de lei complementar (PLP). A oposição já se articula para submeter PEC do Estado mínimo, com cortes incisivos na Previdência Social, Saúde e Educação.
“A disputa está somente começando”, avalia o historiador Carlos Fidelis, presidente do Cebes e pesquisador da Fiocruz. “É preciso mobilizar a sociedade para a disputa que se trava entre os defensores de mecanismos de concentração e captura de renda e aqueles que preconizam políticas redistributivas de inclusão e de fortalecimento da democracia, da cidadania, do emprego e do mercado interno”, afirma.
Os pisos da Saúde e Educação foram estabelecidos ao longo de mais de 30 anos. “A luta pelo direito à Saúde, uma das bandeiras da redemocratização, não se encerrou com a Constituição de 1988 nem com a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.808). O Congresso só votou em 2000 a primeira regulamentação, de fato, do financiamento da Saúde, que foi a Emenda Constitucional 29. A luta para definir a responsabilidade da União culminou na Emenda Constitucional 86, de 2015. A vigilância precisa ser constante”, reforça Iola Gurgel.
Para Iola, a “reforma de rendas”, com o cumprimento da promessa de isenção do imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil, seguida de outras que tendem a incidir sobre altos salários, podem ser considerados “um prenúncio muito positivo do que é necessário fazer para que o conjunto de direitos sociais que está na nossa Constituição não sejam perdidos”. “Não há porque inventar a roda a essa altura. A Constituição de 1988 apontava uma estratégia que a sociedade brasileira definiu para reencontrar e retomar o desenvolvimento econômico, que foi a construção de Estado do Bem Estar Social. Há legitimidade histórica e identidade”, conclui.
Para o médico sanitarista José Noronha, integrante do Conselho Consultivo do Cebes e pesquisador da Fiocruz, é preciso rediscutir também a política de juros altos, que drena o orçamento público. “Já são sequestrados por ano quase um trilhão para pagamento de juros e encargos da dívida. Estamos diante de um segmento rentista predatório e insaciável, que vive sugando na os recursos públicos, ao qual pouco importa a extrema desigualdade no país nem o subfinanciamento da politicas publicas redistributivas”, afirma.
“O Brasil não pode continuar a pagar as maiores taxas de juros do mundo. Empreendimentos produtivos de vulto ou pequenas necessidades, como a aquisição de um fogão, encontram-se submetidos, me perdoe os termos, a agiotagem com alvará. O país vai pagar mais de R$ 900 bilhões de juros da dívida em 2024. Ao mesmo tempo, o governo se vê constrangido na implementação de políticas capazes de alavancar o dinamismo econômico. Como gerar empregos e fortalecer o mercado interno sem investimentos?”, reforça Fidelis.
* Clara Fagundes é jornalista, especialista em Comunicação e Saúde (Fiocruz) e Comunicação e Desenvolvimento (IIMC-Delhi).
Artigo publicado originalmente no portal Congresso em Foco.