Espião na UnB, um relato
Heleno R. Corrêa Filho repercute reportagem da Carta Capital
Nos anos 70 a UnB era amordaçada e estuprada pelo capitão de corveta biônico que destruiu várias pesquisas nas áreas científicas e reprimiu pesquisadores que se tornaram patrimônio internacional na França, Israel, Estados Unidos, Inglaterra e outros países que drenaram “cérebros” brasileiros, incluindo a Venezuela, onde a pesquisa sobre malária tornou-se mais adiantada que no Brasil.
Para nós, alunos de graduação da época, era um sofrimento ter de aturar a burrice idiota dos “espiões secretos” que conviviam conosco nos porões dos laboratórios do “Minhocão”. Eram todos tão idiotas, tão burros, tão estúpidos que pareciam andar com cartaz na testa dizendo que eram esbirros da ditadura.
Alguns eram milicos, sabujos pegajosos que ganharam vagas sem prestar vestibular. Frequentaram as aulas junto com os que de fato tinham passado nas provas e tiveram direito a diploma, um deles como médico, quase matou a própria neta receitando Benzetacil intramuscular de seis em seis horas, dias antes da formatura. Só não concluiu o homicídio culposo por que uma professora viu a receita na mão da mãe da criança e tomou o papel antes que o crime fosse perpetrado.
Esses estúpidos “espiões secretos” subornavam com dinheiro, presentes, e algumas vezes chantagens contra os secretários de curso quando descobriam que algum era “gay”. A homofobia tinha raízes muito fortes e mediante chantagens e ameaças obtinham com antecedência as questões de prova que teriam de ser respondidas no dia seguinte antes da impressão oficial. As listas de provas eram então compartilhadas com alguns colegas “mais frágeis” ou amigos da repressão, que se divertiam tirando notas altas incompatíveis com o grau de estudo que sabíamos que não tinham.
Havia um interessante encontro moral entre os chantagistas espiões e os moralistas conservadores que os ajudavam. Os moralistas eram contra as saias curtas das meninas que não conseguiam convencer em seus assédios. Gostavam de usar o poder dos espiões para maldizer as “meninas de esquerda” que não davam nada para eles, nem bola nem sexo. Algo muito parecido com o que falam os membros da quadrilha bozo e seus (m)sinistros de estado. As mulheres “de esquerda” não dão para idiotas de direita nem para seus financiadores. Isso os deixava magoados, coitados. Daí gostavam tanto de falar em tortura, pixavam banheiros com difamações e em 2020 apreciam as palavras de seu líder ideológico dos EUA que é encantado com o ânus dos seus adversários e correligionários políticos. Tudo em alta filosofia.
Os “espiões” tinham de ser aceitos circulando no nosso meio, os professores os respeitavam temerosos, os colegas recusavam sua companhia ou aderiam conforme suas próprias escolhas morais e políticas. Ou ignoravam ou aderiam, conforme o que era chamado “Lei de Gerson” – do desastroso comercial de cigarros (de tabaco) feito pelo jogador de futebol que terminava com a frase “Você gosta de levar vantagem em tudo! Certo!”
Um colega da direita notória do interior de SP, que fazia parte do grupo que “levava vantagem” junto com o “espião”, roubou uma charge desenhada no caderno de laboratório que ridicularizava a vinda do Papa ao Brasil como uma reunião de urubus explodindo na esplanada dos ministérios. Esse foi o pretexto para uma onda de prisões de estudantes da UnB em 1970 sob acusação de terrorismo, por que pretendiam explodir o Congresso Eucarístico da Igreja Católica conservadora que vinha elogiar a ditadura. O Sinistro da educação da época – o Coronel Jarbas “Passaralho” – chegou a dar entrevistas ao “Globo” (que coincidência), dizendo que estavam montando bombas contra o papa.
Passados 45 dias de cadeia, terminou a Copa Mundial de Futebol com direito a roleta russa para cada gol adversário contra o Brasil. Dos vinte e poucos presos alguns foram torturados, deixaram uma estudante paralítica em crise paranoide após espancamento na Polícia Federal e no DOPS de Brasília, desapareceram alguns militantes de partidos clandestinos, outros fugiram para a Argentina e Uruguai onde se tornaram operários nas indústrias automotivas, outros foram ameaçados de serem explodidos com granadas na boca em lugares afastados do cerrado junto ao Pelotão de Infantaria do exército (PIC), e mais “várias coisas como essas”.
Os estudantes presos pela “denúncia” dos esbirros da ditadura enfrentaram processos pela Lei de Segurança Nacional que se(os) arrastaram durante anos, infernizando a vida dos que tinham sido perseguidos. Um deles, dos mais humanos e sensíveis, veio a se suicidar anos depois quando voltou ao Brasil, conseguiu ser readmitido e formou-se, logo em seguida atirou-se de uma janela do prédio do Hospital de Base do DF.
O “espião da UnB” de 2020 deve seu perfil atual a esse passado abjeto e nojento. Não é menos nojento por que também deve ser identificado por qualquer pessoa que seja capaz de passar no Exame Nacional do Ensino Médio. Quem sabe esse estúpido ladrão do dinheiro público tenha até passado no ENEM. Pode até compartilhar com professores, alunos e funcionários regulares da UnB sua missão “secreta”, que qualquer pessoa comum identifica e isola.
Que vá juntar-se aos seus antepassados de memória lambuzada com fezes e sangue. Que um dia devolva o salário que recebe por que é roubado dos trabalhadores que foram massacrados com a reforma trabalhista e previdenciária dos esbirros da ditadura atual – Guedes, Maia e Alcolumbre. Que um dia prestem contas desse crime contra o direito público e contra a democracia, e tenham a dignidade de não se matarem para enfrentar o clamor contra seu papel ruim contra a democracia e o povo, de quem roubaram seus salários.