Está na lei: é pra valer!
Nilcéa Freire*
Retrocesso. Essa é a palavra certa para definir a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ao arquivar definitivamente, no dia 27 de abril, o processo do caso do homem que espancou e queimou o corpo da companheira grávida de seis meses, em novembro de 2006, na cidade de Samambaia. Essa decisão contraria a Lei Maria da Penha (11.340/2006) , que não permite acordos e diz que a continuidade da ação não depende da vontade da vítima, e está na contramão do que diz respeito à garantia dos direitos das mulheres.
Diante desse e de outros casos, não se pode exigir da mulher que sofre violência doméstica, e que por vezes enfrenta situações de ameaça de morte ou se encontra frente à promessa de uma mudança do companheiro, que ela se responsabilize pela decisão de dar continuidade ao processo nos casos de lesão corporal. Dados da pesquisa Percepções sobre a violência doméstica contra a mulher no Brasil, divulgada em abril pelo Ibope, Instituto Avon e Instituto Patrícia Galvão, mostram que 17% afirmam que o medo de morrer caso rompa a relação é vista como a principal causa para continuar com o agressor.
Decisões como essa reproduzem a ideia de que a violência doméstica constitui um assunto privado, que deve ser tratado no âmbito das relações familiares e não pelo sistema de Justiça. Podem enfraquecer a aplicação da lei e levar a um descrédito por parte da população, no que diz respeito à proteção jurídica e policial. O estudo revela que a maioria dos entrevistados (56%) não confia na proteção oferecida à agredida.
Além disso, tal decisão pode abrir precedentes para que outros agressores saiamimpunes e sintam-se encorajados para continuar na prática da violência doméstica. Nesse caso, vale notar que esse tribunal está na contramão da história, já que hoje mais da metade da população entende a violência doméstica contra a mulher como crime e requer do sistema judiciário a punição dos agressores. De acordo com a pesquisa, 51% dos entrevistados defendem a prisão do agressor e 11% a participação em grupos de responsabilização para agressores conforme previsto na Lei Maria da Penha. O levantamento revela que cresceu de 68% para 78%, entre 2008 e 2009, o conhecimento da lei, e 44% acreditam que a legislação já vem surtindo efeitos. Para a população, a questão cultural e o alcoolismo estão por trás da violência.
Diante desse fato e dos dados, constato que o conservadorismo e o machismo ainda estão bem longe de serem superados na nossa sociedade. Ainda persiste aquele antigo ditado de que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Nesse sentido, cabe aos agentes públicos, em especial das áreas da segurança e Justiça delegados de polícia, defensores públicos, promotores de Justiça, juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores, intervirem na questão da violência contra as mulheres. Esse foi o desejo do legislador quando tornou, no âmbito da lei Maria da Penha, esse delito como de ação pública incondicionada.
A incansável luta das mulheres por direitos logrou fazer reconhecer que a violência doméstica e intrafamiliar não é matéria da esfera privada, mas é uma questão de Estado. No entanto, a certeza da impunidade que alimenta tantos crimes é lamentavelmente reforçada quando um tribunal de justiça decide pelo arquivamento de um processo de
violência contra a mulher, alegando que deve prevalecer a vontade da vítima em retirar a queixa. A consequência dessa decisão é a extinção da punibilidade do agressor.
É interesse público que cesse a violência contra as mulheres, não podendo o Estado tolerá-la em nenhuma hipótese. A impunidade de crimes praticados contra a mulher não pode mais ser aceita e autorizada tacitamente. A lei existe, portanto, cumpra-se.
*Médica, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Foi reitora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Fonte: Correio Braziliense, 5/5/09