Exclusivo: DF negou pedidos de aborto legal a vítimas de estupro

DF negou procedimentos sob justificativa de gravidez ter mais de 22 semanas. Porém, legislação não define prazo-limite para abortos legais.

De 2020 até setembro último, o Distrito Federal negou ao menos 22 pedidos de aborto legal, sob o argumento de que o tempo de gravidez era superior a 22 semanas. O Metrópoles apurou que essas gestações – todas decorrentes de violência sexual – não foram interrompidas, pois a Secretaria de Saúde da capital do país (SES-DF) se baseou em uma norma técnica do Ministério da Saúde publicada em 2012.

Assim, a interpretação do documento, que não tem força de lei, impediu o acesso ao aborto legal a pessoas com mais de 22 semanas de gravidez no Distrito Federal. No entanto, isso contraria a legislação brasileira, que não estabelece tempo máximo para o procedimento. Atualmente, ele é permitido em três situações no país: gestação resultante de violência sexual; com risco de morte para a mãe; ou que gerou feto anencéfalo.

Os detalhes sobre a quantidade de abortos não “autorizados” pela SES-DF – negativas que violam o direito de vítimas de estupro – foram obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), com base em dados do Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei (PIGL), responsável por atender pessoas que sofreram violência sexual e gerido pela própria pasta.

Procurada pelo Metrópoles, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informou, por um lado, que se fundamenta na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2011), do Ministério da Saúde, mas, por outro, ampara-se no Código Penal e na Constituição Federal para provimento dos serviços de interrupção gestacional previstos em lei.

Ainda segundo a pasta, no processo de acolhimento, as vítimas de estupro são orientadas quanto a todas as alternativas legais diante de uma gestação decorrente de violência sexual: interrupção – aborto; manutenção da gravidez; e prosseguimento para entrega legal do recém-nascido à adoção assistida.

Contudo, no caso de pessoas com gestação acima de 22 semanas, as orientações da secretaria são mais específicas e não direcionam as vítimas para o procedimento de aborto legal, “tendo em vista a necessidade de embasamento em nota técnica vigente”. Quem procura a rede nessa situação, portanto, recebe informações apenas sobre as possibilidades de manutenção da gravidez e de entrega supervisionada à adoção.

“Em ambos os casos, a paciente é direcionada ao pré-natal e, optando pela entrega legal, apoiada nos trâmites necessários. Assim como a rede de atenção à saúde é informada sobre a decisão para condução adequada e respeitosa aos cuidados pré-natais”, comunicou a SES-DF. A resposta completa da pasta pode ser lida no fim do texto.

Questionado pelo Metrópoles quanto ao previsto na norma técnica mencionada, o Ministério da Saúde respondeu que qualquer documento elaborado ou revisado pelo órgão acerca do tema segue os preceitos éticos, as evidências científicas e respeita os marcos legais brasileiros.

A pasta federal ressaltou que as condutas estipuladas em questões de saúde pública estão em conformidade com as recomendações das organizações Mundial (OMS) e Pan-Americana da área (Opas). O ministério acrescentou, porém, que a revisão e atualização de atos normativos são medidas necessárias e fazem parte das atribuições do órgão, como autoridade sanitária. Também lembrou que o tema do aborto legal é discutido no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Negativa a 191 pedidos

Entre 2020 e setembro deste ano, o PIGL recebeu 863 pedidos para realização de aborto legal no Distrito Federal, mas só 672 foram aprovados. As negativas tiveram os seguintes motivos, segundo o documento obtido via LAI:

  • Gestação não confirmada ou perda espontânea;
  • Gestação de relação consentida ou incompatível com a data da violência;
  • Grávida não retornou;
  • Grávida decidiu seguir com a gestação;
  • Idade gestacional acima de 22 semanas;
  • Gravidez ectópica ou mola; e
  • Paciente de outro estado.

O Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei não dispõe de informações relacionadas a períodos anteriores, segundo a Secretaria de Saúde. “A sistematização interna desses dados se tornou de iniciativa própria da equipe [do PIGL] a partir de 2020, pois a SES-DF ainda não conta com aba de Sala de Situação dedicada a esse serviço”, argumentou a pasta.

E, em relação à justificativa “gestação de relação consentida ou incompatível com a data da violência”, a secretaria negou 48 pedidos sob essa alegação.

No entanto, vale lembrar que a Lei Federal nº 12.845/2013 garante o atendimento integral às pessoas em situação de violência sexual e que a Norma Técnica de Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual com Registro de Informações e Coleta de Vestígios, do Ministério da Saúde, prevê o atendimento às vítimas sem exigência de registro de boletim de ocorrência – inclusive para casos de interrupção da gravidez.

As gestações atendidas no âmbito do PIGL e identificadas como ectópicas – que ocorrem fora do útero devido a desprendimento do óvulo – são interrompidas pela equipe do plantão de emergência ginecológica do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib).

Já os casos de gravidez molar – quando um tumor benigno se desenvolve no útero como resultado da gestação – ou cromossomicamente anormal com potencial de se tornar maligna são atendidos no Hospital Regional da Asa Norte (Hran).

Além disso, quando pessoas de outras unidades da Federação entram em contato com o PIGL do Distrito Federal, elas são atendidas via telessaúde e orientadas a buscar atendimento em serviço equivalente no estado de origem, segundo a SES-DF. Caso, ainda assim, haja algum tipo de impedimento, a equipe do programa no Hmib acolhe os pacientes, “obedecendo aos princípios da universalidade e da integralidade” do Sistema Único de Saúde (SUS).

Aborto legal no Brasil

Professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista na área de aplicação do direito em questões de saúde, Silvia Badim Marques afirma que o artigo 128 do Código Penal trata da descriminalização do aborto para vítimas de violência sexual e gestantes que correm risco de morrer caso a gravidez prossiga. “No caso em que há gestação de feto anencéfalo ou com má-formação considerada incompatível com a vida, [a possibilidade] foi legalizada no Brasil por meio de uma decisão judicial, uma ADPF”, acrescentou.

Além disso, Silva enfatizou que as normas técnicas existem para orientar o que está previsto em lei e que não há prazo-limite da gestação para interrupção da gravidez nos três cenários citados. A professora levantou, ainda, um problema grave em se estipular prazo nos casos que envolvem estupro: no Brasil, 70% das vítimas de violência sexual são meninas de até 14 anos.

“Há um silenciamento das vítimas de violência sexual, e existem diversas consequências no campo da saúde mental para essas mulheres. Então, há uma demora para que ela consiga processar o que aconteceu, perceber que está gestante e que [o feto] foi fruto de uma violência”, ressaltou.

Outro ponto é que há poucos serviços de referência para abortamento legal no país, e muitas mulheres não sabem que têm direito a esse atendimento. Os locais que existem costumam ficar em grandes cidades e longe de regiões periféricas, o que diminui a chance de as vítimas entenderem que sofreram violência sexual, receberem o acolhimento necessário em diferentes aspectos, escolherem o procedimento pelo qual preferem passar e de, se for o caso, interromperem a gravidez em segurança.

Silvia ainda mencionou um tópico recente na discussão sobre o aborto no Brasil. Em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma orientação para que médicos não realizassem abortos após a 22ª semana de gestação. “Mas não existem parâmetros na legislação nem nas normas brasileiras que vão limitar esse tempo. Então, o Supremo Tribunal Federal, por um motivo muito mais de ordem formal do que material, do mérito da questão,  julgou que essa norma não poderia continuar válida”, completou a professora de direito.

Apoio às vítimas

A médica Ana Costa, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), reforçou o tópico sobre a interrupção legal da gravidez não estar condicionada ao tempo gestacional. A especialista também considera que impor um prazo para que grávidas tenham acesso a esse direito representa também um ataque à lei.

“Se você limita, de forma ilegal, a descontinuação da gravidez às 22 semanas, você está obstruindo o direito das mulheres de terem a gravidez interrompida na forma como a lei garante”, salienta a doutora em ciências da saúde.

A médica também pontuou que as normas técnicas do Ministério da Saúde servem como orientação geral para procedimentos. “Elas estabelecem um padrão mínimo de atendimento, que nos orienta, inclusive, para uma garantia de qualidade mínima que deve ser oferecida no serviço – os quais devem se aperfeiçoar cada vez mais”, completou Ana.

Para a especialista, o impedimento da realização de um aborto em caso de gravidez acima de 22 semanas representa uma interpretação errada da norma técnica, mediada por um olhar moralista, misógino e sem compaixão com as mulheres.

No caso de gestações superiores a esse tempo, a diretora do Cebes destacou que a indicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é pela assistolia fetal. O procedimento consiste na injeção de cloreto de potássio para interromper os batimentos cardíacos do feto antes da remoção dele do útero.

“É um procedimento ético que facilita tanto para os profissionais da saúde quanto para a gestante. Você garante que o feto seja retirado sem qualquer sinal de batimento cardíaco, que normalmente é associado com a vida”, detalhou a médica.

Ana ainda chamou a atenção para a necessidade de que não só médicos, mas toda a sociedade, atuem para amparar as mulheres, principalmente as que sofreram violência sexual. “Temos de começar a pensar se alguém que busca o aborto legal merece ser julgado por esse serviço e se nós, enquanto Estado, profissionais de saúde, vamos nos omitir diante desse sofrimento. Até quando vamos olhar para essas pessoas não as enxergando como vítimas de um sistema que as submete a tanto sofrimento?”, questionou.

Posicionamento da SES-DF

Leia a resposta da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) na íntegra:

“A Secretaria de Saúde informa que, atualmente, fundamenta-se tecnicamente na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2011), do Ministério da Saúde. A Nota Técnica Conjunta nº 2/2024-SAPS/SAES/MS do Ministério da Saúde foi suspensa no mesmo dia da publicação, não sendo possível à SES-DF se fundamentar por seu conteúdo.

Legalmente, a SES-DF se ampara no Código Penal Brasileiro e na Constituição Federal para provimento de serviços de interrupção gestacional prevista em lei, dispondo de uma unidade de saúde de referência para os três permissivos previstos na lei brasileira – sendo que, para os casos de violência sexual, existe um programa específico, o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL), com vistas ao cumprimento dos princípios do Sistema Único de Saúde, quais sejam: universalidade, integralidade e equidade.

Visando à segurança técnica e jurídica das equipes que executam o acolhimento das pessoas em situação de gestação passível de interrupção conforme a lei brasileira, a SES-DF se ampara na nota técnica vigente.

A Secretaria de Saúde dispõe de três serviços de interrupção gestacional prevista em lei, executados no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) – referência, por portaria distrital, para interrupção gestacional.

São eles:

1. Serviço de Alto Risco: dedicado ao acolhimento de pessoas gestantes cuja gravidez representa risco de morte. De acordo com a legislação brasileira e com as normativas técnicas vigentes, as gestantes devem ser reguladas pela atenção primária à saúde para a avaliação do setor de alto risco, onde serão acolhidas e avaliadas.

2. Medicina Fetal: dedicado, entre outras atribuições pertinentes à especialidade, ao acolhimento de pessoas gestantes de fetos anencéfalos ou com outras malformações incompatíveis com a vida. Em casos de anencefalia, as gestantes são reguladas pela atenção primária à saúde ou, ainda, podem ser atendidas por porta aberta no setor de Medicina Fetal para acolhimento, avaliação clínica e seguimento ao procedimento de interrupção adequado à idade gestacional.

3. Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL): dedicado ao acolhimento de sobreviventes de violência sexual que estejam gestantes em decorrência deste crime. Executado por equipe multiprofissional (assistente social, enfermeira, médicas gineco-obstetras e psicóloga), o programa funciona em regime de porta aberta, a fim de evitar barreiras de acesso, e recebe direcionamentos de todos os pontos da rede de atenção à saúde ou da rede intersetorial. Funciona em regime ambulatorial, de segunda à sexta-feira, de 7h às 18h.

O fluxo de atendimento abarca as seguintes etapas: acolhimento, avaliação clínica (verificação da compatibilidade cronológica entre a idade gestacional e a data da violência informada pela vítima); havendo parecer técnico favorável por compatibilidade cronológica, realiza-se o procedimento de interrupção adequado à idade gestacional. Após o procedimento, a equipe administra um ambulatório de retorno, que possui serviço de telemonitoramento de enfermagem e medicina, teleconsulta quando necessário e consultas de retorno com enfermeira, médica e psicóloga 30 dias após o procedimento.

Vale mencionar, ainda, que durante o acolhimento as pacientes são orientadas a todas as alternativas legais mediante uma gestação decorrentes de violência sexual: interrupção, manutenção da gestação para vinculação familiar e manutenção da gestação para entrega legal e assistida à adoção – de modo que a autonomia de escolha da pessoa é respeitada e qualquer decisão é apoiada pela equipe multiprofissional.

Nos casos em que a escolha é pela interrupção, passados os 30 dias do procedimento, após a consulta de retorno, a paciente é referenciada para a rede de saúde, com direcionamento para seguimento em saúde sexual e saúde reprodutiva na atenção primária à saúde, além de acompanhamento psicossocial nos Centros Especializados de Proteção e Assistência às Pessoas em Situação de Violência (Cepavs) – dispositivos da Rede de Atenção à Pessoa em Situação de Violência (RAV) da SES-DF dedicados às pessoas em situação de violência doméstica, intrafamiliar e sexual.

Além disso, o PIGL cumpre estritamente a legislação no que diz respeito ao sigilo. Há, ainda, articulação com a rede de proteção às crianças e adolescentes nos casos de violência sexual e gestação de pessoas menores de 18 anos, sobretudo em se tratando de estupro de vulnerável (crianças e adolescentes menores de 14 anos). O PIGL conta, ainda, com espaço separado de parturientes para a realização dos procedimentos de interrupção gestacional.

Tendo em vista a necessidade de embasamento em nota técnica vigente, as pacientes com gestações acima de 22 semanas são orientadas sobre as demais alternativas legais frente à gestação decorrente de violência sexual: manutenção da gestação para vinculação familiar ou para entrega legal e supervisionada à adoção. Em ambos os casos, a paciente é direcionada ao pré-natal e, optando pela entrega legal, apoiada aos trâmites necessários, assim como a rede de atenção à saúde é informada sobre sua decisão para condução adequada e respeitosa dos cuidados pré-natais.

O Programa de Interrupção Gestacional/Hmib dispõe de psicóloga na equipe multiprofissional; bem como os Cepavs são formados por equipe de atenção psicossocial, disponíveis ao acompanhamento longitudinal dessas pessoas. Além disso, a medicina fetal oferta amparo psicológico para as pacientes que passam por interrupção de gestações de fetos mal formados, dispondo de um ambulatório de luto perinatal.

Em relação à manutenção das gestações, profissionais da Secretaria de Saúde são orientados a promover e respeitar a autonomia das pessoas gestantes, informando-as sobre as alternativas disponíveis nos casos de gestação decorrentes de violência e provendo cuidados adequados nos casos de gestação de alto risco e de malformação fetal.

É ofertado semestralmente o curso de atualização para cuidados às pessoas em situação de violência sexual, fornecendo informações sobre o aborto legal em casos de gestação decorrente de violência. Além disso, o programa é campo regular de residência para assistentes sociais do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Criança; para médicos residentes do Programa de Ginecologia e Obstetrícia; além de ser campo de estágio optativo para todos os outros programas de residências médicas e multiprofissionais do Distrito Federal. Para mais, o PIGL tem portas abertas às visitas técnicas de estudantes e profissionais das áreas da saúde.

Por fim, o Programa de Interrupção Gestacional realiza palestras e rodas de conversa em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), o qual colabora com as redes sociolocais, reunindo profissionais da rede intersetorial (saúde, educação, segurança, assistência social) – de modo que profissionais de diversos serviços tenham conhecimento sobre o funcionamento do programa.”

Essa matéria de Jonatas Martins foi publicada originalmente no portal Metrópoles.

Foto: Palácio do Buriti, sede do governo do DF | Crédito: Webysther/Wikipedia.