Exposição ao SARS-COV-2 e os Desafios da Vigilância em Saúde frente à Cidadania Globalizada
artigo escrito por Maria Juliana Moura-Corrêa1 e Rogers Kazuo Rodrigues Yamamoto2
A Organização Mundial da Saúde de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) (2005) classificou o (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavírus 2- Sars-Cov-2) como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) (WHO, 2020)1. No Brasil, após o primeiro caso confirmado de COVID-19 (26 de fevereiro de 2020), a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS), constituiu o Centro de Operações de Emergência (COE) do Ministério da Saúde, para harmonização, planejamento e organização das atividades de enfrentamento à epidemia e o monitoramento dos casos e serviços, declarando evento de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)2.
Segundo dados internacionais3, até 07 de setembro de 2020, a pandemia atingiu 188 países, um total de 27.147.626 casos acumulados da COVID-19 com 889.456 óbitos acumulados. O Brasil ficou em 3º lugar, entre os países com maior número de casos confirmados de Covid-19, com 4.137.521 casos acumulados e 126.650 óbitos acumulados. Entre os 15 países, com maior número de casos, o maior coeficiente de mortalidade por Covid-19 foi no Peru com 88,8/1.000.000, enquanto no Brasil ocorreram 58,1/1.000.000.
A crise sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus, responsável pela ocorrência da doença Covid-19, evidenciou as desigualdades sociais no âmbito da saúde coletiva, entre os países, regiões e população. Especialmente, em países em desenvolvimento, com frágil estruturação do Estado de Bem Estar Social, como os da América Latina. Desvela, também, a crise política, humanitária, econômica e os arranjos geopolíticos, pela submissão a agenda neoliberal e ao mercado em contraposição à vida.
Por outro lado, demonstra à importância e centralidade das políticas universais da saúde, educação, assistência social, previdência social, saneamento básico e habitação para o enfrentamento à disseminação da Covid-19 em cada país.
No Brasil, a vigilância em saúde está estruturada pela divisão de atribuições entre os três níveis de governo, com ênfase no poder estatal e autonomia das instâncias gestoras para ação junto à coletividade. Sua prática é organizada pelo modelo assistencial fundamentado nos princípios da universalidade, descentralização, intersetorialidade, integralidade e equidade das ações de promoção da saúde dos indivíduos e grupos. E a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), integra institucionalmente as vigilâncias: – Epidemiológica, Sanitária, de Saúde do Trabalhador e Ambiental, que é operacionalizada pela abordagem dos componentes da vigilância em saúde no território, no problema e análise de situação de saúde.
Portanto, os avanços conceituais e metodológicos da organização das ações de vigilância no âmbito do SUS, se estruturam pela visão ampliada de saúde, que avança do modelo da história natural das doenças para incorporar fundamentos do modelo da determinação social, dos riscos, agravos e danos, à luz da moderna Epidemiologia4.
Diante da ausência de tratamento e de carteira de imunidade da Covid-19, até o momento a única ação coletiva de mitigação da transmissão do SARS-CoV-2 é o distanciamento social. Modalidade de ação sanitária, semelhante à quarentena utilizada no enfrentamento da pandemia da gripe espanhola, em 1918. Entretanto, a diferença entre as duas pandemia é a velocidade da disseminação do vírus, que ocorre num período de desenvolvimento tecnológico e abertura do mercado global que favoreceu a intensa circulação das pessoas, da informação e da cultura. Mas, também, de intensa deterioração das condições de trabalho, de direitos sociais e de padrões ambientais sustentáveis.
A tendência, nesse contexto da saúde global, é de que o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (SNVS) passe a enfrentar problemas de regulamentação sanitária, tanto no âmbito do processo interno nacional e internacional.
Diante desse cenário, a Saúde Global tem relevância no âmbito da vigilância tanto pelo fato da disseminação de doenças em caráter pandêmico quanto das estratégias que devem ser planejadas em territórios ampliados. Dessa forma, compreendem-se que as “questões de Saúde transcendem a organização nacional, seus limites e governos, e que chamam atenção para ações de controle sobre as forças e fluxos globais capazes de determinar os processos de saúde e doença das pessoas”5. A aplicação do conceito de Saúde Global resulta em maior inclusão social, na medida em que seus pressupostos constituem-se em: – necessidade de superação da fragmentação e dos interesses concorrentes, da autonomia e compromisso dos países na condução e garantia das políticas públicas de saúde, entre as quais aquelas voltadas para o melhor controle dos determinantes sociais e econômicos da saúde. Outro componente refere-se a representação participativa, realizada por diferentes segmentos da sociedade na organização dos sistemas e políticas de saúde.
Entretanto, apesar da concordância com a ideia da saúde mundial ser indivisível, questionamentos tem sido realizado a respeito das assimetrias, da governabilidade dessas ações e controles, principalmente quanto às recomendações técnicas sanitárias a serem adotados pelos países, o que teoricamente deveria ser conduzida por organizações supranacionais, formada e supervisionada pela representação dos diversos países e estados membros. Esse modelo tem encontrado resistências, especialmente relacionados com a definição de limites geopolíticos e de governabilidade estabelecidos.
No campo do poder, incertezas têm sido lançadas sobre o quanto a influência dos países industrializados, na adoção de medidas unilaterais, podem afetar a autonomia e soberania nacionais e interferir nas respectivas agendas políticas. Assim como, sua capacidade em supervisionar a formulação de estratégias e implementação de políticas de controle sanitário, que considere as demandas econômicas e sociais específicas de cada país. Essas questões têm suscitado enormes debates entre as partes envolvidas, notadamente dos Estados Unidos e Brasil que tem adotado postura de contraposição às orientações da OMS aos países membros, adotando narrativas de cunho ideológico, politizando os discursos, numa condução de flexibilização da ação preventiva do distanciamento social para atender o mercado, e, consequentemente dificultar o estabelecimento de consensos com base em conhecimento científico preconizado para o enfrentamento global da Covid-19.
Não obstante a todas essas dificuldades emergentes, a preocupação sobre os impactos econômicos gerados pela implantação das políticas de controle sanitário, evidenciaram projetos em disputa, entre a defesa da vida e da economia baseado na superexploração da natureza. Até mesmo setores conservadores, como por exemplo “The Economist e Financial Times”, reconheceram a importância do Estado, das políticas de renda mínima e a taxação de fortunas, como medidas necessárias para que os países possam construir um “novo normal”. Porém, o que se verifica no Brasil, é uma intensificação das disparidades sociais, desfinanciamento das políticas públicas e continuidade de uma agenda liberal de contrarreformas de retirada de direitos, superexploração dos trabalhadores e meio ambiente, que se sobrepõe a todos os demais componentes, com impacto na seguridade social e no processo saúde e doença em questão.
Desse modo, os desafios atuais apontam para a necessidade urgente de adoção de um novo projeto societário centrado na sustentabilidade ambiental e econômica, na ação coletiva e democrática. Assim como, ampla análise sociopolítica para refletir sobre a nova questão social, fundamentada na produção social da saúde das populações e os fatores que conduziram a pandemia do novo coronavírus, na busca das mediações que operam entre as condições reais, a reprodução nos grupos sociais, no espaço e na produção da saúde e da doença, para fins de redução dos potenciais impactos gerados pela crise sanitária.
Granda6, numa visão sumária e metafórica dos propósitos característicos da vigilância em saúde, “estabelece ênfase em dois aspectos: no poder da vida e da ética com o objetivo de gerar conhecimentos e ações de defesa da saúde, da vida e da democracia, em sinal de que o ético viabiliza o humano”. A partir deste entendimento, podem-se, também, dimensionar as medidas de vigilância em saúde de forma integrada com referenciais e estratégias de intervenção que incluam os territórios local e global, conforme já preconizado por Milton Santos7 , onde cada lugar é ao mesmo tempo objeto de razão local e razão global. Isso inclui, uma abordagem “glocalizada”8, que atua integrando as preocupações locais e mundiais pela “localização” das forças e influências mundiais de modo a tornar possível a “domesticação” desse conjunto de fatores num processo de adaptação estratégico pertinente ao controle e recuperação desses impactos.
Os desafios e conflitos internacionais gerados pela instalação da pandemia ameaça globalmente o desenvolvimento social e econômico de todos os países, com sérias repercussões no modo de vida e trabalho da população, para os próximos anos. Seus impactos inter-relacionados em diversos setores das sociedades (sejam eles, negativos ou positivos), “nunca é unidirecional ou impossível de ser detida, havendo muitas formas de resistir à sua influência hegemônica”7, o que permite concluir sobre possibilidades de até mesmo mitigar ou diluir o peso dos seus impactos sobre o cotidiano das pessoas.
O enfrentamento ao agente global SARS-CoV-2 exige ações globais e locais de vigilância que considerem a importância das informações para adoção de critérios decisórios de medidas sanitárias de acordo com as particularidades geográficas de cada região, das tecnologias em saúde e do acúmulo de conhecimento científico compartilhado entre as nações para enfrentamento da COVID-19.
No que se refere aos aspectos locais da mitigação da pandemia, diante da complexidade da realidade brasileira e a trajetória da Vigilância em Saúde e seus desafios contemporâneos de fundamentadas questões conceituais e da prática, se impõe colocar ação numa vigilância orientada por formato universal, integrada, participativa e territorial, tendo como protagonistas a sociedade e os trabalhadores do SUS8. Nessa perspectiva participativa, Corrêa-Filho9 reflete que a vigilância em saúde tem muito a progredir em questões ligadas à otimização da qualidade e eficiência dos processos de comunicação em saúde. Assim como, o direito a partilhar das decisões nesse momento caracterizado por uma guerra humana, química, viral ou bacteriológica, a qual os indivíduos deveriam estar inseridos como sujeito.
Além disso, o direito a população do exercício ao distanciamento social e a testagem universal de contatos assintomáticos são ações bem sucedidas de vigilância em saúde, utilizadas na Coreia do Sul, para bloquear o surgimento de novos casos e reduzir a mortalidade, que podem ser utilizadas no Brasil10. Para isso, impõe-se a necessária realização de teste rápido para portadores de partículas virais, de fabricação de kits diagnósticos, financiamento para pesquisa e produção em plantas industriais nacionais, plano de mobilização e contingência para o distanciamento social e medidas de proteção coletiva e individual. Também, adoção de políticas que fomentem a geração de empregos e fontes de rendas alternativas que não comprometam a segurança sanitária ou mesmo subsidios voltados para custear uma Renda Mínima Cidadã, como formas de enfrentar o período caracterizado pela “morte econômica da economia popular, a fome e a violência”10.
Outra ação potencial a ser adotada, é vigilância em saúde na Atenção Primária de Saúde, por meio do reconhecimento dos territórios, enquanto estratégia de análise e intervenção sobre a dinâmica social, da determinação de vulnerabilidades dos grupos sociais e suas interações e fluxos nos espaços geográficos. Essa ação territorial pode ser desenvolvida a partir da prática de Emergência Epidemiológica, na qual a vigilância brasileira tem experiência no rastreamento da cadeia de transmissão, em tempo real. Para essa situação, pode ser aplicado o método baseado em modelos dinâmicos/redes sociais11,12,13. Comumente, esse método tem sido utilizado para agentes infecciosos, com o propósito de compreender a dinâmica da epidemia nas relações entre os indivíduos. Pode, portanto, transformar-se em estratégia de identificação da propagação do novo coronavírus, nos espaços coletivos de vida e trabalho. Por meio desse modelo matemático, com o auxílio da tecnologia das informações em rede, é possível contribuir com o desenvolvimento de estratégias de prevenção e mitigação da cadeia de transmissibilidade do SARS-CoV-2.
Reafirma-se, também, a importância da posição do Cebes14 de denúncia sobre a insuficiente estratégia brasileira de mitigar os efeitos da pandemia pelo aguardo da imunização do ‘rebanho’ (imunidade de grupo), traduzida como “impunidade de rebanho”, que já demonstrou ser ineficaz em outros países, como por exemplo, no Irã e na Itália. Essa posição, associada à decisão não criteriosa, sem respaldo dos indicadores epidemiológicos, de liberar comércio e atividades não essenciais, em contraposição às medidas não farmacológicas de distanciamento social, coloca em risco a população geral e diretamente os trabalhadores, pela banalização da aceitação do aumento da mortalidade, especialmente entre as populações mais vulneráveis, notadamente de baixa renda, da periferia, e que infelizmente, não possui condições adequados para acesso aos meios assistenciais que possam salvar suas vidas.
Assim, conclui-se, que tanto para o âmbito global e local, a atualidade central da diretriz histórico organizativa do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) que afirma: – sem democracia, não há saúde, complementada para o século XXI por Corrêa-Filho14 como: sem democracia e comitês populares participativos, não há Vigilância em Saúde.
Autores:
1 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Núcleo Rio Grande do Sul (RS), pesquisadora associada Enps/Fiocruz – Rio de Janeiro (RJ).
2 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Núcleo Goiás (GO), mestrando/pesquisador pelo Programa de Pós Graduação em Medicina Tropical e Saúde Pública, subárea Epidemiologia – Universidade Federal de Goiás (UFG).
Referencias bibliográficas
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