‘Falta amor’, diz cubana que completa um mês de Mais Médicos no RS

Desde dezembro, Lourdes Mann atende pacientes no município de Cristal. Em entrevista, médica relata experiências e impressões sobre o estado.

Caetanno Freitas | G1

Enriquecer não está entre as prioridades da doutora cubana Lourdes Richardson Mann, selecionada para atuar pelo programa Mais Médicos em Cristal, no Rio Grande do Sul. Especialista em atenção primária à saúde, a médica da terra de Fidel Castro cede 90% do seu salário mensal a Cuba e ao governo brasileiro e, mesmo assim, tem a convicção de que pode viver bem com cerca de R$ 1.000 no pequeno município da Região Sul, de pouco mais de 7,6 mil habitantes, sua nova casa pelos próximos três anos. Nascida em Caimanera, província de Guantánamo, Lourdes passa, aos 42 anos, a imagem de uma mulher segura, confiante e focada no objetivo de oferecer, pelas próprias mãos, saúde gratuita para a população mais carente, sem condições de pagar por uma consulta particular.

Em entrevista ao G1, Lourdes Mann fala sobre seu primeiro mês no país e suas impressões em um território bem diferente de sua origem socialista. “O Brasil vive um problema de falta de caridade humana. Falta amor ao próximo”, interpreta. Em relação à resistência da classe médica ao Mais Médicos, ela não demonstra tanto espanto. “Não vejo nada estranho nisso. É um programa novo, pouca gente conhece. Nós, cubanos, estamos preparados para isso. Não viemos para enriquecer, temos um conceito diferente, um conceito revolucionário. A vida vem primeiro”, diz.

A médica, mãe de três filhos, também relata a experiência vivida durante cinco anos na Venezuela, onde havia, à época, um programa semelhante ao que é realizado hoje no Brasil. O período na terra de Hugo Chávez ainda lhe ajudou a garantir a participação do programa brasileiro.

Antes mesmo de chegar ao país, já estava familiarizada com os costumes locais. Em Havana, onde morou por cinco anos entre uma viagem e outra, ouviu clássicos de Roberto Carlos e o embalo do samba de Alexandre Pires. Agora, nas horas vagas, além de falar com os filhos, tenta aprender a sambar. “A comida é muito boa. A música também. Ainda não escutei a música tradicional dos gaúchos. Gosto de samba. Minhas colegas do posto de saúde estão me ensinando a sambar. Isso quando não temos pacientes”, brinca a médica.

Abaixo, confira a entrevista com a médica cubana.

Você nasceu em Havana? Sempre pensou em fazer medicina?

Não nasci na capital, sou de Caimanera, província de Guantánamo. Estou em Havana há cinco anos. Ou melhor, estava. Agora vivo em Cristal (risos). Quando eu era criança, queria ser professora como minha mãe. Mas depois, com 18 anos, tive uma inclinação forte para a medicina, porque é uma carreira muito ampla, com várias possibilidades, muito humanitária. Estudei por seis anos até me formar como médica.

Por que existem tantos médicos em Cuba?

No meu país, existe uma preocupação muito grande com as pessoas, com o povo cubano. Todos cuidam de todos. Acho que a medicina tem esse poder de ajudar as pessoas. Gosto de ajudar as pessoas. Por lá, a maioria pensa assim. Existem muitos médicos formados em Cuba com foco na atenção básica. Não me imaginaria, com a minha cor de pele, negra, cursando medicina em outro país. No Brasil, vocês têm cotas.

O que mais você sabe sobre a saúde e a educação no Brasil?

Conheço muito pouco sobre a educação daqui. Sei muitas coisas sobre o lado da saúde. Alguns dias atrás, por exemplo, atendi uma criança com suspeita de apendicite, algo grave, portanto. Me orientaram a ligar para o hospital mais próximo para saber se eles tinham vaga para internar aquela criança. Em Cuba, casos como esse não precisam de formalidades, de pedidos, para internação de urgência. Encaminhamos o hospital e o atendimento é feito na hora porque ela não pode esperar. Corre riscos… Pedir permissão para internar em casos de urgência? Isso não existe por lá. Fiquei sabendo que pessoas entram na Justiça para conseguir um leito aqui. É um absurdo. O Brasil vive um problema de falta de caridade humana. É isso que falta para as pessoas. Falta amor ao próximo.

Como o Mais Médicos chegou até você? Qual sua experiência profissional?

Tenho mais de 10 anos de experiência em atenção básica à saúde. Em Havana, trabalhava em um consultório, em uma policlínica, como chamamos em Cuba. Os hospitais são atenção secundária, assim como aqui. As policlínicas são primárias, preventivas. Eles estavam procurando pessoas com esse perfil para vir ao Brasil. O programa chegou em Cuba há mais ou menos um ano. Mas foi uma coisa voluntária, uma opção que fiz, porque já tinha realizado uma missão na Venezuela e ter experiência anterior em outro país era um dos requisitos para se candidatar.

Como foi sua missão na Venezuela?

Passei cinco anos da minha vida lá, entre 2004 e 2009. Estive em Bolívar e Caracas. Não faz tanto tempo assim. Chavez tinha muitas ideias liberais semelhantes ao que se vê hoje em dia em Cuba. A igualdade, a vontade de eliminar a pobreza, de dar saúde a todos e educação ao povo. Vi programas de habitação para comunidades carentes, centros de diganósticos integrados, supermercados, tudo voltado à população pobre. Foi uma experiência marcante. Quando terminei minha missão na Venezuela, me mudei para Havana. Tive a possibilidade de comprar um apartamento e fui para a capital. Tenho uma irmã que também vive lá, e ela se sentia muito sozinha.

E como foi a preparação montada para os cubanos que chegaram ao Brasil em dezembro?

Éramos mais de 200 médicos. Fizemos uma escala em Manaus e depois fomos a Vitória. Participamos de um curso para aprender português durante 21 dias. Aprendemos também sobre o sistema de saúde (SUS), como as coisas funcionam por aqui. Foi uma passagem tranquila, muito boa. Lá definiram o destino de cada um de nós. Essa parte não foi opcional porque ninguém conhecia o país, então não importava muito para onde iríamos.

Você tem alimentação e habitação assegurada?

Quando cheguei aqui no Cristal já tinha um apartamento me esperando, com cozinha, banheiro, um quarto e uma sala. Está bom. Fizemos um acordo com o governo, onde doamos mais da metade do dinheiro que recebemos para o povo cubano. Ficamos com mil reais, que é o suficiente. Cuba fica com os R$ 10 mil e distribui ao governo brasileiro e me manda a minha parte. Também recebemos ajuda com alimentação, dá uns R$ 500 por mês. Para mim é o suficiente, não quero enriquecer. Quero ajudar as pessoas daqui.

Como você está se sentindo? As pessoas lhe tratam bem?

Estou feliz. Todos me receberam muito vem. Dizem que sou bem-vinda. Todos por aqui são muito hospitaleiros, receptivos. No posto de saúde, todos colaboram comigo, precisam ter paciência por causa do português. Ainda estou aprendendo. Tenho muito apoio da prefeitura também e de toda comunidade.

Do que você está gostando mais?

A comida é muito boa. Muito parecida com a de Cuba. A música também. Ainda não escutei a música tradicional dos gaúchos. Gosto de Roberto Carlos, Alexandre Pires… Gosto de samba. Minhas colegas no posto de saúde estão me ensinando a sambar. Isso quando não temos pacientes…

A maior dificuldade é o idioma?

Ah, com certeza. Eu tenho me esforçado, aprendemos muita coisa lá em Vitória. Disseram que tínhamos de aprender rápido, mas é difícil. Sei de alguns médicos cubanos que vieram para cá, ao Brasil, e pediram para voltar porque não conseguiram aprender. Vocês falam muito rápido (risos). Mas a comunicação é fundamental. Vou aprender, é questão de tempo.

Você tem filhos? Como faz para fazer contato com sua família?

Sim, tenho três filhos, todos homens. Falo com eles pela internet. Ernesto, 10 anos, Roberto, 16, e Rafael, 18. Meu pai, minha mãe e duas irmãs também estão lá. Eu não pensava em sair de Cuba mais uma vez. Não queria mais. A família entendeu quando decidi, os filhos maiores também. O pequeno não. Ele não entende, sempre vai necessitar de sua mamãe por perto.

Existe alguma dificuldade com a classe médica? Quando vocês, cubanos, chegaram ao Brasil, houve uma reação por parte dos médicos brasileiros contrários ao programa.

Não vejo nada estranho nisso. É um programa novo, pouca gente conhece. Nós, cubanos, estamos preparados para isso. Não viemos para enriquecer, temos um conceito diferente, um conceito revolucionário. A vida vem primeiro. O restante é secundário. A riqueza, a casa, o conforto, o glamour, tudo isso é secundário. Mas estamos preparados para essa resistência. Desde que não aconteça nada que me ofenda, que me agrida… Na Venezuela, houve resistência também. A situação era igual. Os médicos venezuelanos não queriam colaborar com os cubanos.