Federalismo, saúde pública e macrojustiça na pauta do STF
por Élida Graziane Pinto e Fernando Facury Scaff em artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo
Supremo retoma debate sobre a judicialização da saúde
Nesta quarta-feira (11) o plenário do Supremo Tribunal Federal retomará o debate da judicialização da saúde. Estão em pauta (i) o fornecimento de medicamentos não relacionados no programa estatal de dispensação de medicamentos em caráter excepcional (RE 566.471); (ii) a concessão de medicamentos não registrados na Anvisa (RE 1.165.959); e (iii) o dever de progressividade no piso federal em ações e serviços públicos de saúde (ADI 5595).
O que há em comum entre esses três processos, além da sua profunda repercussão para o nosso SUS, é a disputa por verbas orçamentárias para a concretização dos direitos sociais, com responsabilidade de custeio por toda a sociedade.
Trata-se de mais um desafio para a macrojustiça em nossa sociedade, voltada às ações de saúde, sobretudo diante do risco de pandemia mundial do covid-19 (novo coronavírus), já assumido pela Organização Mundial de Saúde nesta semana.
Uma solução insuficiente proposta pelo governo federal é a da abertura de crédito extraordinário para conciliar os limites do teto da emenda 95/2016 com as necessidades de despesas emergenciais dessa pandemia. Todavia, apostar nos créditos extraordinários não é uma solução adequada, pois pontual e ocasional.
O sistema judicial pode fomentar o alcance de soluções perenes na via ordinária da política pública de saúde. Foi nesse sentido que, em 2009, o ministro Gilmar Mendes cunhou o termo “macrojustiça” após a primeira audiência pública convocada no STF para tratar da judicialização da saúde nos autos da Suspensão de Tutela Antecipada 175. Era um contraponto à “microjustiça” das milhares de demandas individuais, com pleitos de medicamentos e procedimentos a serem ofertados pelo SUS.
A efetividade do sistema público de saúde brasileiro tem sido historicamente colocada em contraste com os seus supostamente elevados custos e com suas mazelas político-gerenciais. Fosse cumprida a Constituição de 1988, o financiamento da política pública de saúde não seria tão instável ao ponto de se tornar um impasse judicializado. Conforme o artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 30% do orçamento da Seguridade Social deveria ir para o SUS, o que, em valores atuais, quase dobraria a dotação orçamentária do Ministério da Saúde.
Infelizmente, sucessivas emendas constitucionais, regulamentações e restrições interpretativas mitigaram o alcance operacional e financeiro do SUS, sobretudo para reduzir proporcionalmente o dever de gasto mínimo federal em saúde. Enquanto isso, estados e municípios têm sido compelidos —judicial e socialmente— a expandir seus gastos em saúde muito além dos seus respectivos pisos. Ao longo do tempo, uma verdadeira guerra fiscal de despesas se instalou no SUS, cuja face mais imediata é a sobrecarga da microjustiça da saúde em torno dos processos individualizados que também, por óbvio, sobrecarregam o sistema de Justiça.
A retração da União no custeio da política pública de saúde agrava o cenário de disputa na pactuação federativa e de fragilidade do planejamento sanitário. Esse é o contexto em que se emparelham a emenda 86/2015 (cujos artigos 2º e 3º estão em debate na ADI 5595) e a emenda 95/2016, que simplesmente assegurou correção monetária aos pisos federais em saúde e educação e desconstruiu sua relação de proporcionalidade com a arrecadação da União.
A cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595 é, nesse contexto, um ponto culminante sobre a inconstitucionalidade de pontuais mitigações ao dever de progressividade no custeio do direito à saúde.
Mais do que julgar individualmente o acesso a medicamentos e procedimentos ou mesmo de adotar a solução “ad hoc” de abrir crédito extraordinário para o SUS, é necessário fazer justiça e respeitar a Constituição, resguardando que haja financiamento juridicamente estável e fiscalmente progressivo conforme o nível da arrecadação estatal para os gastos com a saúde pública.
Nenhuma outra macrojustiça é mais urgente para o direito à saúde pública em nosso país, até mesmo como meio de enfrentamento racional e estruturante da crise pandêmica do coronavírus. Para fortalecer esse sistema, o STF deverá pautar em primeiro plano a ADI 5595 e confirmar a cautelar já concedida —urge que isso seja feito, pois a diferença financeira é relevante e impactará os próximos 16 anos caso se mantenha o prazo dado pela emenda constitucional 95, do teto de gastos.
Vedar retrocessos normativos no custeio e na gestão federativa do nosso sistema de saúde pública o habilitará a prevenir e enfrentar quaisquer surtos, epidemias e pandemias. Este é o caminho da macrojustiça social, que vai além da estrita e excepcional fronteira do controle judicial individualizado. Para atingir tal finalidade, a mais importante ação em debate no STF é a ADI 5595.
A cebiana Élida Graziane Pinto é professora de finanças públicas da Escola de Administração de Empresas de São Paulo-FGV e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Fernando Facury Scaff é professor titular da Faculdade de Direito da USP e advogado.