Francisco R. Funcia: ‘(Des)Financiamento do SUS: o que fazer?’

Francisco R. Funcia escreve sobre processo de retirada de recursos do SUS a partir da vigência da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 – também conhecida como Teto de Gastos – e apresenta propostas para interromper esse processo. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS), Professor dos Cursos de Economia e Medicina da USCS e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde.

O objetivo deste artigo é refletir sobre o processo de desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e apresentar algumas propostas para interromper esse processo no curto, médio e longo prazos. Trata-se de momento oportuno para esse fim, qual seja, início dos trabalhos de transição para o novo governo eleito que assumirá o mandato a partir de 1º de janeiro de 2023 e tramitação da peça orçamentária de 2023 no Congresso Nacional.

A expressão “desfinanciamento do SUS” tem sido adotada pelos pesquisadores da Economia da Saúde para identificar o processo de retirada de recursos do SUS a partir da vigência da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, recursos esses que já eram insuficientes para garantir o cumprimento pleno do preceito constitucional que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” – situação essa que era definida como “subfinanciamento”. Com isso, podemos dizer que o “desfinanciamento” representa a fase do aprofundamento do processo histórico de “subfinanciamento”, caracterizando o início do processo de desmonte do SUS a partir de 2017.

A EC 95/2016 ficou conhecida pelo “Teto de Gastos” – congelamento das despesas primárias do governo federal (aquelas voltadas para ações e serviços de atendimento às necessidades da população, como nas áreas da saúde, educação, transportes, habitação, proteção social, agricultura, energia, etc.) no valor total dos pagamentos realizados em 2016 (atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE). Mas, para as áreas da saúde e educação, a EC 95/2016 criou uma restrição adicional em prejuízo do interesse público, a saber: congelou até 2036 os valores dos respectivos pisos que vigoraram em 2017 (também atualizados anualmente pela variação do IPCA/IBGE).

Em outros termos, a saúde e a educação foram duplamente penalizadas pela EC 95: passaram a ter um piso “rebaixado” e, ao mesmo tempo, limitado a um teto global de despesas, de tal modo que, para essas duas áreas gastarem acima dos seus respectivos pisos, outras áreas teriam que gastar abaixo da variação do IPCA/IBGE para que se cumprisse o teto das despesas primárias. De nada adianta a receita crescer anualmente até 2036, porque nenhum centavo será destinado para atender às necessidades da população, que cresce a 0,8% ao ano segundo o IBGE – ou seja, a regra da EC 95/2016 vai reduzir os gastos per capita em saúde, educação, transportes, habitação, etc., até 2036!

Não há como romper com o processo de desfinanciamento do SUS, nem como tratar da retomada das políticas sociais, fora do contexto da mudança da política econômica baseada na austeridade fiscal, que está em vigor nos últimos anos e que tem na EC 95/2016 um dos seus principais instrumentos operacionais. Revogar a EC 95/2016 e substituir por outra regra de controle das contas públicas é condição necessária para a retomada de um modelo de desenvolvimento socioeconômico baseado na justiça social e nos Objetivos Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU.

Por isso, romper com o desfinanciamento do SUS requer desde já um tratamento matricial, isto é, a avaliação conjunta de no mínimo três áreas da equipe de transição do novo governo eleito: saúde, fazenda/economia e planejamento.

A EC 95/2016 retirou do SUS no período de 2018 a 2022 cerca de R$ 37 bilhões segundo estudos da ABrES (Associação Brasileira de Economia da Saúde)¹ – cifra apurada pela diferença entre os valores orçamentários e os valores dos pisos de cada ano calculados pela regra anterior da EC 86/2015 (que foi suspensa por 20 anos pela EC 95/2016).

Considerando o valor que consta no Projeto de Lei Orçamentária da União de 2023 para o Ministério da Saúde (R$ 149,9 bilhões) e adotando-se a mesma metodologia anterior, serão retirados adicionalmente do SUS cerca de R$ 23 bilhões em 2023, passando o total de perdas acumuladas para R$ 60 bilhões por causa da EC 95/2016.

Nessa perspectiva, é preciso alertar que a discussão que a mídia está fazendo de recomposição imediata da programação orçamentária do Ministério da Saúde está incorreta: não deve prosperar a alegação de que será suficiente apenas transformar a reserva financeira de R$ 20 bilhões no valor do orçamento de 2023 do Ministério da Saúde (destinados para as emendas parlamentares – metade para as individuais e de bancadas e metade para as emendas de relatoria ou “orçamento secreto”) em retomada da programação de despesas que já vinham sendo executadas pelo MS e que foram cortadas pelo governo federal no PLOA 2023 (como ocorreu com saúde indígena, vacinas e vacinação, programas de formação profissional de saúde, programas da atenção básica, dentre outros).

Isso porque essa reserva financeira dos R$ 20 bilhões foi feita dentro R$ 149,9 bilhões do piso federal do SUS, piso esse que, como vimos, já está “rebaixado” para 2023. Portanto, transformar essa reserva financeira em programação de despesas que já vinham sendo executadas não representa aumentar o orçamento do Ministério da Saúde, mas sim mantê-lo em R$ 149,9 bilhões, ou seja, no valor depreciado pelas regras da EC 95/2016!

O que é preciso e necessário fazer para interromper o desmonte do SUS em curso desde 2017? Mais do que vontade política do novo governo eleito, é preciso interromper o processo de desfinanciamento do SUS e iniciar um processo de aumento dos recursos durante os quatro anos de mandato, ou seja, alocar adicionalmente esses 60 bilhões no período 2023-2026, isto é, R$ 15 bilhões por ano, cifra que corresponde, por exemplo, a menos de 2% dos cerca de R$ 800 bilhões da Dívida Ativa da União² que estão classificados como passíveis de sucesso de cobrança pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, ou aproximadamente 1% da Receita Bruta Primária da União.

Além disso, é preciso mudar a Política de Financiamento do SUS¹, proposta amplamente discutida pela ABrES junto ao Conselho Nacional de Saúde, às entidades da Reforma Sanitária e outros movimentos e associações que integram a Frente pela Vida, às universidades, aos movimentos sociais e populares, dentre outros. Segundo esse documento, seria preciso mudar a regra de cálculo do piso federal do SUS, de modo que não tenha mais fatores relacionados à dinâmica cíclica da economia, como por exemplo a receita, que cresce quando a economia cresce e cai quando a economia entra em crise – as necessidades de saúde da população não obedecem essa dinâmica, muito pelo contrário.

A meta proposta para essa Nova Política de Financiamento do SUS incluiria também o aumento da participação dos gastos públicos sobre os gastos totais em saúde para 60%, em consonância com padrões internacionais de financiamento da saúde, sendo que no mínimo 50% desses gastos públicos seriam federais (que hoje representam 42%) para atingir a 3% do PIB em até 10 anos – isso faria que os atuais valores da aplicação federal – R$ 646,00 per capita, 14,2% da Receita Corrente Líquida e 1,6% do PIB – passassem respectivamente para R$ 1.365,00 per capita, 26,6% da Receita Corrente Líquida e 3,0% do PIB.

O estudo da ABrES indica os mecanismos fiscais para romper com o desfinanciamento do SUS e garantir um financiamento estável e adequado nos próximos anos. As resoluções e recomendações do Conselho Nacional de Saúde sobre o tema não estão sendo cumpridas, inclusive a execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde tem sido baseada num Plano Nacional de Saúde 2020-2023 que foi reprovado pelo Conselho Nacional de Saúde em maio de 2021.

Em resumo, o que é preciso fazer para romper com o desfinanciamento do SUS?

  • a) Adotar a abordagem matricial envolvendo as áreas de saúde, fazenda e planejamento desde agora pela equipe de transição do novo governo eleito;
  • b) Recompor imediatamente os recursos do Ministério da Saúde retirados para fazer a reserva financeira das emendas parlamentares, articulando com o Congresso Nacional para que isso ocorra ainda neste ano;
  • c) Aumentar os recursos federais para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde, emergencialmente, no valor das perdas de 60 bilhões causadas pela EC 95 (a razão de R$ 15 bilhões por ano até 2026), por meio de Medida Provisória inicial do novo governo após assumir o mandato em 1º de janeiro de 2023;
  • d) Adotar gradativamente (em até dez anos) uma nova política de financiamento do SUS, de modo que os gastos públicos representem 60% do gasto total em saúde e os gastos federais representem 50% do total dos gastos públicos (equivalente a 3% do PIB), cabendo ao novo governo coordenar e articular politicamente junto ao Congresso Nacional.

A hora é agora. Saúde não é gasto. Saúde é investimento. Saúde é vida!

Notas:

(1) Estudo realizado pelos economistas Bruno Moretti, Carlos Octávio Ocké-Reis, Erika Aragão, Esther Dweck, Francisco R. Funcia, Maria Fernanda Cardoso de Melo, Mariana Melo e Rodrigo Benevides a convite da ABrES sobre uma proposta de Nova Política de Financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf.

(2) Alves, R; Alves, H; Vignoli, F.H.; Funcia, F.R. PERFIL DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO: Contribuintes devem R$ 2,4 trilhões”. Revista Eletrônica Domingueira da Saúde, nº 41, outubro/2020. Campinas: Idisa (Instituto de Direito Sanitário Aplicado), 2020. Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-41-outubro-2020.