Gonzalo Vecina fala sobre o Sistema de Saúde na Próxima Década

Gonzalo Vecina Neto escreveu ao Domingueira sobre a Gestão Pública para o século XXI. Ele elenca 7 pontos sobre o futuro da SUS para a próxima década, como a necessidade de maior financiamento e a criação de redes assistenciais regionais para atender as necessidades de grupos populacionais e não de municípios. Vecina é membro do IDISA, professor assistente da FSP/USP e da EAESP/FGV. Até 04 de Dezembro, a Revista Eletrônica Domingueira da Saúde publica artigos com o tema O SUS na próxima década, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.

Usando como base destas ideias as discussões promovidas pelo IDISA e que deram origem a proposta de ações a serem desencadeadas pelo próximo governante eleito, pretendo realizar um conjunto de analises voltadas para propostas que levem em conta a próxima década em sua viabilização. Realço que algumas linhas de pensamento são de minha exclusiva responsabilidade.

Segue a apresentação dos pontos que destaco para a próxima década:

1 – O primeiro e mais importante ponto é sem dúvida a questão do financiamento. Nada poderá ser realizado sem resolver ou propor uma alternativa real para esta questão. O pensamento cartesiano, geralmente nos leva para armadilhas, mas não é possível avançar sem ter uma proposta de enfrentamento da questão do financiamento. A alternativa é desistir de ter um SUS com os princípios deste. Se não for universal, integral e equitativo, se puder ser somente para pobres, cofinanciado, etc., aí será outra coisa. Se for isso que a sociedade brasileira quiser, vamos restringir nosso sonho civilizatório.

Por isso, é inescapável começar a discussão com essa questão – a proposta que tem sido colocada, prescreve que o gasto público em saúde tem que chegar nessa década a pelo menos 6% do PIB. Será o mínimo aceitável e esse dado se escora no gasto de países vizinhos como o Uruguai, Argentina e Chile e os países da OCDE. Com certeza, esse patamar deve ser alcançado com a elevação do gasto federal, uma vez que a disposição existente na EC-29 que determina os percentuais de 12 e 15% da receita bruta de estados e municípios, é considerado como uma contribuição adequada e quem está defasado na questão em discussão é a esfera federal.

Como será o arranjo econômico para conseguir dar conta de sair de 4,3% do PIB para 6% é uma questão a ser discutida e uma projeção a ser realizada na economia destruída do pais e que deverá ser proposta dentro do arranjo a ser discutido pelo próximo governo, após a destruição de todos os princípios tão duramente implementados desde a criação do plano real. E ai será incontornável se discutir a questão das reformas tributaria e fiscal, teto de gastos, lei de responsabilidade fiscal e principalmente a ponte para o futuro e os limites que terão que ser considerados nessa transição. E onde saúde não será o único tema – educação, segurança alimentar e geração de empregos serão os protagonistas junto com saúde.

Mas com certeza e devido a escassez de recursos no primeiro momento, uma discussão critica terá que ser a forma da transferência dos recursos federais de maneira a ter um mínimo de capacidade de indução de políticas fundamentais – voltadas para incrementar a atenção básica e para o atendimento dos principais gargalos da media e alta complexidade. Nesse sentido, creio que os repasses deverão ser realizados, sem perder a capacidade de acompanhar a progressão destes gastos, ou seja gerando AIHs, APACs, contabilização de todos os atos assistenciais, mas as transferências deverão obedecer a uma série histórica e a decisão de aplicação dos recursos deverá ser da competência dos gestores locais como será discutido no tópico 3 adiante. Portanto os recursos federais, que significam hoje 50% do financiamento do SUS, na parte que significa transferências federais, deixa de ser repassado com base em produtos e passa a ser com base nas transferências anteriores, que deverão ser acompanhadas e se necessário, corrigidas.

2 – O segundo gargalo importante busca discutir a questão muito complexa da eficiência. A eficácia e efetividade será abordada no tópico 3 e 4. Como aumentar a eficiência na mobilização de recursos de forma a produzir resultados dentro da estrutura burocrática do estado brasileiro. Aqui entra a discussão da reforma administrativa. Lembrando que hoje se encontra no Congresso a proposta de emenda à constituição PEC – 32/2020, que é muito ruim. Não sinto que exista maturidade para discuti-la e compreende-la.

A reforma do modelo de financiamento certamente terá linhas mais claras para sua definição, mas para reforma administrativa será necessário enfrentar a discussão sobre a privatização dos serviços de saúde. Ou uma drástica transformação do estado que não se está verificando em nenhum país do mundo. As mudanças no mundo trabalho geradas pelo impacto do uso intensivo da tecnologia da informação não conseguem acomodar as necessidades de isonomia no uso de recursos públicos quando se compra coisas ou se contrata pessoas. No mundo a alternativa tem sido a realização de diversos modelos de parceria com a iniciativa privada, mediadas ou não por lucro. E no Brasil estas transformações vêm sendo duramente criticadas com o rotulo de financeirização da saúde. A questão a ser enfrentada, é em que medida esse fenômeno da financeirização é parte do caminho e o remédio, será ter um estado com capacidade de regular o apetite do capital.

Em algumas áreas a evolução foi tão rápida que essa questão nem mais é discutida. É o caso da área de analises clinicas. No geral, existem exceções e elas são explicáveis – embora não caibam neste artigo, a solução hoje é a contratação estes serviços por grandes empresas que concentraram a produção de exames em grandes fabricas e com um projeto rigoroso de controle de qualidade. O maior problema da área de analises clinicas hoje – no mundo todo – não é realizar exames e sim a logística para deslocar o material a ser analisado. Ou seja, foi estabelecido um tipo de relação entre prestadores de serviço privados e o estado que deve entregar um melhor estruturado programa de atenção. É dessa maneira que a atenção básica quase que em todo Brasil incorporou os exames clínicos na atenção e em parte revolução semelhante começa a ocorrer também na área de imagens. E com uma brutal financeirização das empresas envolvidas.

Não dá para olhar parte desses movimentos, como as organizações socias de saúde e achar que não são privatizações e ou terceirizações, pois são. A questão é como o estado através dos incumbentes realiza a verificação se as entregas estão de fato ocorrendo ou se está existindo desvios e perda de eficiência.

A reforma administrativa do estado brasileiro é um imperativo e não devido a área da saúde. Mas sim, devido as necessidades de funcionamento de todo o estado. Mas creio que essa reforma não será suficiente para entregar a eficiência que o setor privado estará entregando na realização dos serviços de saúde. Ou seja, mesmo com uma reforma administrativa bem realizada, diferentes relações entre o estado e serviços privados terão que ser aceitos, como, por exemplo as parcerias público privadas.

3 – Se os dois problemas anteriores são muito complexos e exigirão muita discussão, este certamente será o mais difícil. É necessário repensar o projeto assistencial. Trata-se de criar redes assistenciais regionais para atender as necessidades de grupos populacionais e não de municípios. Talvez um dos erros mais graves destes anos de implantação do SUS foi entender a diretriz da descentralização presente na CF como um comando de municipalização e ignorar as manchas demográficas e a questão da incorporação de tecnologia/resolutividade nas ações medicas dentro do território.

São de duas ordens as dificuldades – a primeira é do desenho político da distribuição do poder de governar entre estados e munícios que elegem seus governantes de dois em dois anos. Existem alternativas e desenhos possíveis? Certamente sim, mas pouca discussão se travou em relação a essas alternativas. E, pior se a discussão do ponto 2 se mistura com este ponto, isso pode gerar um problema mais grave ainda. Discutir reforma administrativa e reforma assistencial, poderá gerar alternativas muito ruins.

A segunda dificuldade, diz respeito a questão da incorporação de tecnologia e da resolutividade. Não se pode ter de tudo em todos os lugares e isso exigira que em um país onde essa questão nunca foi regulada, se crie um espaço inicialmente no público sobre regulação de oferta da tecnologia. O estado passará a decidir o que pode ser comprado e oferecido. E como será esse zoneamento. Com certeza esta questão devera ser enfrentada juntamente com a da decisão de incorporar tecnologia via CONITEC/ROL-ANS. Não poderemos continuar com uma solução de incorporação de tecnologia para pobres/SUS e outro para ricos/ROL-ANS. De novo não conseguirei travar essa discussão neste texto, mas a construção de regiões de saúde e o projeto de governança sobre elas será vital de ser discutido juntamente com o da resolutividade e cobertura/oferta das soluções tecnológicas.

4 – Um problema importante, mas seguramente menos complexo que os anteriores, diz respeito a questão da C&T&I. Afinal já foi testada a capacidade de resposta do país quando dos genéricos e das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo – PDPs. Além disso nas áreas de prospecção de petróleo em águas profundas, aumento da produtividade agrícola – EMBRAPA e na indústria aeronáutica, tivemos cases de sucesso. A tríplice hélice tem que se movimentar – estado, universidade e indústria têm que se encontrar. O estado deve ter capacidade de induzir os outros atores, como já o fez nas áreas de sucesso e garantir o mercado, sem o que ninguém investirá. As universidades tem que produzir mestres e doutores com boas bolsas pagas pelo estado e isso tem que se traduzir em artigos, publicações – esse é o caminho dos países que estão enfrentando o ciclo do desenvolvimento e boa parte dessa universidade é também publica. E as empresas devem ser estimuladas a enfrentarem o problema dos investimentos e de novo o estado terá a tarefa de induzir. E temos que abandonar o sonho de ter a REMEDIOBRAS! Empresas estatais e em particular sem se expressarem como empresas não terão chance. Na minha opinião este foi um dos equívocos da experiencia das PDPs. Como sempre exceções existem e elas são a Fiocruz e o Butantã e de novo existem explicações para os dois casos.

5 – Uma área especifica e que deverá receber um cuidado especial e intervenção de politicas publicas é o uso intensivo de tecnologia da informação com grande capacidade de interoperabilidade. Temos que radicalizar na solução de problemas através da TI. Temos que patrocinar a existência de prontuários eletrônicos e sua posse ser do paciente de maneira a que esses dados possam migrar entre diversos prestadores dentro da conformação das regiões de saúde. Temos que conseguir implementar o uso intensivo de tele atenção, de uso de manipulação de big data para entender a saúde populacional, usar a inteligência de maquina para produzir melhores soluções assistenciais. Enfim, de novo se está falando da capacidade de indução do estado e da implementação de soluções que trarão um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis.

6 – E existe a questão das pessoas. Dos trabalhadores do SUS. Dos que trabalham, todos em luta por um piso novo e merecido. E ainda existem os profissionais que estão sendo formados e em grande medida malformados. De novo não será possível resolver tudo. Os pisos não caberão no financiamento parco do SUS, mas terão que ser realizados acertos e isso deverá ser proposto nos primeiros seis meses. Não existe racionalidade em propostas de carreiras nacionais, dentro dos estados deverão ser resolvidas essas questões e a qualidade dos cursos terá que ter uma melhor monitoração do Ministério da Educação. E os déficits terão que ser enfrentados em programas regionais de educação permanente, que terão que ser oferecidos pelas secretarias de saúde.

7 – Um desafio que não podemos deixar de registrar para esses próximos dez anos, é o de aprender a lidar com grandes eventos sanitários como foi a pandemia da COVID19. Nesse sentido teremos que construir um órgão para olhar a ocorrência de novas pestes no território brasileiro. O país deverá construir algo como um Centro de Controle de Doenças, com capacidade politica e administrativa para enfrentar desastres sanitários. Este centro devera ter bem desenvolvidas suas capacidades na área de big data e saúde populacional, rastreamento genômico de micro organismos na natureza e isso incorpora as zoonoses, poder de polícia sanitária para controlar surtos e capacidade para induzir a formação de epidemiologistas para operar no país com uma articulação federal.

Acho que esses pontos são os mais cruciais, mas vamos tentar olhar para eles de forma a construir soluções temporais e não definitivas. Nestes anos caminhamos, espero que consigamos continuar a caminhar. Não vejo espaço para revoluções e a forma dialogada como até aqui construímos o SUS, indica que esse deve ser o caminho. Hoje temos um novo capital em mãos – o povo, o cidadão descobriu a importância de ter SUS, não podemos perder esse capital. Temos que distribuir seus dividendos!