HC: proposta de aumentar o atendimento preferencial a plano privado provoca reações

Anna Trotta Yaryd e Gilson Carvalho criticam a ideia.

A matéria intitulada “HC vai ampliar atendimento preferencial a plano privado” , publicada na edição do dia 04 de maio do jornal Folha de São Paulo, provocou uma série de reações que foram divulgadas no mesmo veículo, na seção Tendências e Debates. O texto, assinado por Laura Capriglione, com box de análise feita por Hélio Schwartzman, traz a informação de que o “Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP vai destinar 12% de seus atendimentos aos planos de saúde”.

A primeira reação veio por meio do artigo “Hospital das Clínicas, outro lado da moeda”, do dia 06 de junho. Nele, os autores, Anna Trotta Yaryd e Gilson Carvalho, afirmam: “O SUS é patrimônio brasileiro e nossa garantia de que não ficaremos à disposição dos interesses econômicos e do lucro”. No dia 10 de junho, José Otávio Costa Auler, vice-diretor da faculdade de medicina da USP defendeu a chamada dupla porta. Em seguida (13/06), o Jornal publicou o artigo do ex-ministro da Saúde, Adib Jatene, que constrói raciocínio semelhante ao de José Otávio. Confira abaixo o debate ocorrido nas páginas do tablóide sobre o aumento dos atendimentos do Hospital das Clínica a convênios.

 

“HC vai ampliar atendimento preferencial a plano privado”
Folha de São Paulo (04/05/2011)
Laura Capriglione

Superintendente afirma que dinheiro dos planos de saúde financiará melhorias no serviço gratuito do hospital

Médicos ouvidos pela Folha temem diferença de tratamento entre pacientes do SUS e os que têm convênios

Símbolo mais vistoso da saúde universal, pública e gratuita no Brasil, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP vai destinar 12% de seus atendimentos aos planos de saúde.

Com isso, o HC quadruplicará os serviços prestados a convênios (hoje, apenas 3% dos atendimentos são vendidos aos planos).

Boa parte dos médicos ouvidos pela Folha acredita que a ampliação do atendimento aos portadores de planos de saúde gerará diferenças de tratamento em relação aos pacientes do SUS.

A chamada “dupla porta” de acesso ao hospital acaba privilegiando os pacientes conveniados. Eles podem marcar consultas e realizar procedimentos eletivos com mais agilidade.

O projeto é defendido pelo superintendente do HC, o médico Marcos Fumio Koyama, 37. Mais jovem ocupante do cargo que já pertenceu a baluartes da medicina do país, como Enéas de Carvalho Aguiar e Vicente Amato Neto, Fumio acredita que a ampliação do atendimento aos planos de saúde possibilitará atender mais pacientes SUS “e melhor”.

O doutor Fumio é um tipo peculiar de médico. A residência, ele fez em administração hospitalar. O mestrado, na Fundação Getulio Vargas. Calouro ainda na medicina da USP, ficava mais impressionado com o excesso de exames para diagnosticar um paciente, do que com a própria enfermidade.

Formado, foi para a AIG Seguros. Especializou-se em ampliar a lucratividade do banco no negócio da saúde. Voltou para a Faculdade de Medicina da USP em 2007.

“Não acho que podemos nos contentar em ser, na rede pública, um arremedo do que é feito de melhor na iniciativa privada”, diz.

 

É necessário decidir a que se propõe o Hospital das Clínicas com a mudança
Análise – Hélio Schwartsman
04/05/2011

O interessante quando se tenta compreender a dupla porta é que os argumentos apresentados pelos dois lados soam como corretos.

Se as contas do superintendente do HC estiverem corretas, o resultado líquido da operação será o aumento do número de atendimentos para os mais pobres -uma excelente notícia.

Não obstante, os críticos têm razão ao afirmar que a criação de duas categorias de pacientes leva a encrencas éticas. De fato, se o HC quiser atrair os planos de saúde, precisará atender seus segurados em prazos relativamente curtos, o que significa que eles passarão à frente dos usuários do SUS.

A “solução” do problema depende do objetivo do HC. Se a meta é oferecer um tratamento igualitário, como convém às instituições republicanas, então a distorção introduzida pela dupla porta é inaceitável. Se a missão é atender ao maior número de pessoas possível, então precisamos abraçar a ética utilitarista e aceitar a lógica de que é preciso buscar novas fontes de recursos.

Vale lembrar que a não ampliação dos serviços do HC já implica que menos pessoas terão acesso a tratamento. A diferença é que, nesse caso, a escolha de “quem vive e quem morre” não se explicita. As decisões críticas são varridas para baixo da fila única e republicana.

 

Hospital das Clínicas, outro lado da moeda
Por Anna Trotta Yaryd e Gilson Carvalho
Folha de São Paulo – Tendências e Debates (06/06/2011)

O SUS é patrimônio brasileiro e nossa garantia de que não ficaremos à disposição dos interesses econômicos e do lucro; lutemos para mantê-lo

É assustador ouvirmos que o Hospital das Clínicas do Estado de São Paulo, um dos símbolos da saúde pública do Brasil, pretende quadruplicar o atendimento de convênios e pacientes particulares, sob a justificativa de que isso garantirá a sustentabilidade do atendimento à população em geral.

Profissionais, instalações e equipamentos públicos a serviço do privado, mediante cobrança paralela dos serviços e exames realizados, num Estado que dispõe em sua Constituição que a saúde pública deve ser gratuita.

Sem considerar que muito dinheiro público terá que ser gasto para colocar o hospital público em condições de mercado para atender pessoas que possuem plano de saúde ou se disponham a pagar pelas consultas e procedimentos.

Óbvio. Afinal, quando concordamos em pagar por um plano de saúde, ou mesmo por uma consulta particular, nós estamos dizendo exatamente isso: que não queremos o tratamento que é dispensado pelo SUS aos cidadãos.

Foi o que aconteceu, na prática, com a Fundação Zerbini.

Na década de 1990, ao resolver aumentar sua capacidade para atender clientes particulares e de convênio, levantou um vultoso empréstimo com o BNDES, construiu o InCor 2, belíssimo prédio destinado só para esse tipo de atendimento, não conseguiu pagar as contas e a dívida foi assumida pelo governo do Estado, obedecendo àquela velha fórmula de individualização do lucro e socialização do prejuízo.

Mas esse lado da moeda a administração pública insiste em omitir. Nessa relação promíscua, na qual o público assume caráter suplementar ao privado, não só haverá a diminuição da capacidade operacional do atendimento público, mas também a acomodação natural do setor privado.

Hoje já deficitário, ele deixará de investir na ampliação da própria rede, passando a utilizar-se, de forma bastante conveniente, exatamente dos serviços especializados e de alta complexidade nos quais não quer investir, pelo custo elevado.

Se o critério de escolha das seguradoras de saúde e de clientes particulares a serem atendidos no hospital público for o do melhor preço, o que muito provavelmente será, todos nós pagaremos com dinheiro público a garantia de acesso diferenciado daqueles poucos que puderem pagar mais caro pelos planos de saúde.

Ainda tem mais. Para quem não sabe, há mais de dez anos existem dispositivos legais que permitem a cobrança dos procedimentos prestados aos consumidores dos planos de saúde e respectivos dependentes, não só nas instituições públicas como também nas privadas, conveniadas ou contratadas que sejam integrantes do SUS.

Portanto, nada há a justificar a necessidade de maior destinação de leitos e vagas do atendimento público à elite brasileira.

O SUS é patrimônio brasileiro e nossa garantia de que não ficaremos à disposição dos interesses econômicos e do lucro.

Lutemos; caso contrário, o prejuízo será de todos nós.

Anna Trotta Yaryd é promotora de Justiça do Estado de São Paulo e vice-presidente da Ampasa (Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde).
Gilson Carvalho é médico pediatra e de saúde pública.

 

O Hospital das Clínicas, por justiça social
Por José Otávio Costa Auler Júnior
Folha de São Paulo – Tendências e Debates ( 10/06/2011)

O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, maior sistema hospitalar universitário da América Latina, é a principal referência no atendimento público à população, não ape-nas de São Paulo, mas do país. Centro de excelência, realiza cerca de 300 mil atendimentos emergenciais e mais de 1,5 milhão de atendimentos ambulatoriais por ano. Possui o maior pro-grama de residência médica do país.

Por sua reconhecida capacidade, o Hospital das Clínicas (HC) vem recebendo número crescen-te de pacientes, incluindo usuários de planos privados de saúde, que são atendidos gratuita-mente no sistema acadêmico de saúde.

A conta desse atendimento vai para o SUS (Sistema Único de Saúde), retirando recursos que poderiam ser usados na assistência daqueles que dependem exclusivamente da rede pública. Atendemos 120 mil consultas do SUS por mês. Há uma distorção clara e séria.

Cada vez mais pacientes atendidos de forma gratuita pelo HC possuem planos de saúde. São pessoas que pagam uma empresa privada para que, quando precisarem, possam ser atendidas pela rede hospitalar credenciada. No entanto, quando de fato necessitam de atendimento es-pecializado, acabam buscando a excelência do HC.

Existe um quadro de evidente e indevido benefício aos planos de saúde, que recebem de seus clientes enquanto estes estão saudáveis, mas que, muitas vezes, não gastam um centavo se-quer quando eles precisam de tratamento, principalmente os mais caros.

Por questão de justiça social, é necessário corrigir tal distorção. Propõe-se, portanto, não ampliar o atendimento a convênios no HC, e sim cobrar dos planos de saúde, e apenas deles, pelo atendimento que já é feito aos seus clientes.

Atualmente, só 3% dos pacientes têm o seu atendimento prontamente pago pelos seus convê-nios. Se os planos pagarem pelo atendimento de todos os seus clientes no HC, a receita pode-rá ser revertida para a melhora do atendimento dos pacientes do SUS. Poderemos enfrentar, e superar, o desafio de fazer com que os atendimentos a pacientes do SUS e de convênios particulares caminhem juntos, com redução do tempo de espera e melhoria da infraestrutura oferecida aos pacientes da rede pública.

Para isso, o HC tem como meta dobrar a sua capacidade de investimento, em obras e equipa-mentos, de R$ 25 milhões para R$ 50 milhões em 2012.
O Hospital das Clínicas não irá reduzir o atendimento de pacientes da rede pública em bene-fício de pacientes de planos. Não é correto afirmar que o HC pretenda quadruplicar o atendi-mento a conveniados. Repito: esse atendimento já é feito. Apenas não é cobrado das empre-sas de planos e convênios.

O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, como instituição universitária, man-tém e reforça seu compromisso com o SUS. Colocaremos sempre os interesses de nossos pa-cientes em primeiro lugar, por atendimento universal, gratuito e de qualidade. Esta, sim, deve ser a luta de todos nós.

José Otávio Costa Auler Júnior, professor titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), é vice-diretor em exercício da diretoria da FMUSP e presidente em exercício do conselho deliberativo do Hospital das Clínicas.

 

Desinformação e deformação
ADIB D. JATENE
Folha de São Paulo – Tendências e Debates (13/06/2011)

A afirmativa de que o novo prédio do InCor foi feito para atender apenas pacientes de convênio e particulares é uma deformação inaceitável
No artigo “Hospital das Clínicas, outro lado da moeda”, publicado nesta página no dia 6 de junho, existem afirmativas e conceitos, a meu ver, equivocados, que caracterizam desinformação que deforma o entendimento. Em nenhum lugar na legislação federal brasileira está escrito que o atendimento do SUS deve ser gratuito.

Ao contrário, no parágrafo 2º do art. 2º da lei nº 8.080, de 18 de setembro de 1990, está especificado: “O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.

Quando alguém, segurado em plano de saúde ou paciente privado, é atendido em hospital público e paga valores equivalentes aos que pagaria na rede privada, é desinformação dizer que os equipamentos e as instalações públicas estão a serviço do privado.

Dizer que “a Fundação Zerbini resolveu aumentar sua capacidade, para atender clientes privados e de convênios, levantou volumoso empréstimo com o BNDES, construiu o InCor 2, belíssimo prédio, destinado só para esse tipo de atendimento, não conseguiu pagar as contas e a dívida foi assumida pelo governo do Estado, obedecendo àquela velha fórmula de individualização do lucro e socialização do prejuízo” chega às raias do inacreditável.

Pessoas com a responsabilidade dos autores não podem fazer afirmativas que afrontem a realidade dos fatos. O prédio construído pela Fundação Zerbini não é dela, mas, sim, do Estado.

A participação da Fundação, buscando empréstimo com o BNDES, foi sugerida pelo então governador Mário Covas, que estava comprometido em terminar duas dezenas de hospitais com obras paralisadas havia vários anos e que, por isso, sugeriu que a Fundação construísse o pré-dio, que seria ,como é efetivamente, patrimônio do Estado.

Quando do início do vencimento das parcelas, encontrar-se-ia uma forma de o Estado ajudar, já que recebia prédio de 15 andares sem gastar nada, deixando todo o ônus com a Fundação, que prestava, assim, enorme benefício ao Estado.

Infelizmente, o governador Covas faleceu e, como me disse o governador Lembo, não deixou testamento. Por isso, o equacionamento da dívida só foi feito quando o governador José Serra assumiu, ainda assim se responsabilizando pela metade do empréstimo, sendo que o restante vem sendo pago em dia pela Fundação.

As dificuldades financeiras da Fundação Zerbini, de apoio ao InCor, não foram consequência do prédio, mas principalmente da decisão de fazer o prédio funcionar com a contratação de 1.500 funcionários e demais despesas feitas não pelo Estado, como seria o adequado, mas pela própria Fundação.
A afirmativa de que o novo prédio foi feito para atender pacientes de convênio e particulares é inaceitável. Aproximadamente 10% do prédio se destina a atender doentes de convênio e particulares, sendo que três andares são utilizados para os mais avançados laboratórios de pesquisa do país.

Outros três andares são para garagens, e os demais incorporam terapia intensiva, unidade coronária e demais instalações, na maioria para clientes do SUS.
Sempre que leio um artigo como o publicado na Folha me pergunto se os autores defendem o SUS ou, na verdade, os hospitais privados.

É como se dissessem: clientela que paga melhor e viabiliza financeiramente os hospitais deve ser exclusiva de hospitais privados, e os hospitais públicos que se virem com o que o SUS pa-ga, sabidamente insuficiente.

Como os signatários do artigo não se incluem nessa categoria, é incompreensível que expres-sem tamanha desinformação, deformando de maneira grosseira os fatos.

Adib D. Jatene, cardiologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e diretor-geral do Hospital do Coração. Foi ministro da Saúde (governos Collor e FHC), secretário da Saúde do Estado de São Paulo (gov. Maluf) e diretor do InCor.