Impactos profundos
Washington Sidney | Revista Desafios do Desenvolvimento (IPEA)
Estudo sobre a relação entre saúde e mudanças climáticas revela um Brasil muito vulnerável ao aquecimento global, com a tendência ao aumento significativo de mortes por doenças respiratórias, tropicais e câncer de pele em nossa população
Tsunamis, terremotos, tornados, enchentes, secas, ondas de calor e de frio capazes de ceifar vidas em profusão, como aconteceu na Europa, em 2003. Se tudo isso não bastasse, um agravante: o aumento significativo de casos de doenças, como as respiratórias, o câncer de pele e até as tropicais, como a malária e a leptospirose. Esse quadro pode se assemelhar ao do apocalipse bíblico, mas corresponde a uma realidade prevista insistentemente por cientistas e ambientalistas de várias partes do mundo: o impacto das mudanças climáticas sobre a vida e a saúde das pessoas e do planeta.
O tema tem sido objeto de preocupação de várias instituições mundiais, como a OMS (Organização Mundial de Saúde), a OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) e a Cruz Vermelha. A verdade é que, em vez de promover o conforto e o bem-estar, a intervenção humana na natureza, em nome do progresso, está comprometendo gradativa e irreversivelmente a qualidade de vida da humanidade, sujeitando-a a uma série de enfermidades e mortes precoces. O Brasil, apesar de seus recursos naturais, será uma das grandes vítimas dessa tragédia anunciada.
Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em abril deste ano, tendo como referência as previsões dos modelos climatológicos para o comportamento da temperatura e das chuvas no Brasil até o ano de 2100, traça um quadro desanimador. O resultado do trabalho, sustentado nos modelos baseados nos cenários de emissões de gases de efeito estufa apresentados no 4º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, é preocupante: “O país possui alto grau de vulnerabilidade aos impactos das mudanças climáticas sobre a saúde, dadas suas características geográficas, seu território de tamanho continental, seu perfil climático, sua grande população e seus problemas estruturais e sociais”, alerta José Féres, um dos pesquisadores responsáveis pelo trabalho. Além disso, segundo ele, “a persistência de doenças infecciosas endêmicas sensíveis a mudanças no clima, como leptospirose, malária, dengue, contribui para intensificar a vulnerabilidade do país, e ainda mais com problemas decorrentes de um sistema de saúde pública deficiente”.
As simulações apresentadas pelo estudo sugerem que as mudanças climáticas podem afetar as taxas de mortalidade no Brasil. Os impactos são bastante diferenciados, segundo a faixa etária e a região geográfica. O grupo etário mais vulnerável é o das crianças com menos de um ano de idade. Esta maior vulnerabilidade decorre do fato de as mudanças climáticas provocarem um aumento da incidência de doenças infecciosas, parasitárias e do aparelho respiratório.
“Estas doenças estão entre as principais causas de mortalidade de crianças de zero a um ano. A taxa de mortalidade entre os idosos também aumentaria em virtude do aumento da incidência de doenças ligadas aos aparelhos respiratório e circulatório. Os maiores aumentos da taxa de mortalidade seriam registrados na Região Norte. Já na Região Sul, o aquecimento global tornaria os invernos menos rigorosos, reduzindo as taxas de mortalidade”, observa o pesquisador.
DADOS Além das previsões dos modelos climatológicos para o comportamento da temperatura e das chuvas no Brasil até o ano de 2100, o estudo tomou como referência as principais causas de mortalidade no Brasil entre 1980 e 2002 (doenças do aparelho circulatório, causas externas, neoplasmas, as doenças do aparelho respiratório e as infecciosas e parasitárias, por ordem de importância). Estas cinco causas responderam por 62,1% e 64,1% das mortes de mulheres e homens, respectivamente, como se pode observar na tabela 1 (mortes por 100 mil habitantes conforme a causa, o sexo e a faixa etária).
As doenças infecciosas, parasitárias e do aparelho respiratório estão entre as principais causas de mortalidade para as crianças de zero a quatro anos. Até um ano de idade, as doenças parasitárias e infecciosas respondem por 431 óbitos de crianças do sexo feminino e 543 do sexo masculino, perfazendo um total de 974 mortes por cada 100 mil habitantes. As doenças do aparelho circulatório, por sua vez, começam a ganhar destaque entre as causas de morte a partir do grupo de 25-34 anos de idade. A partir da faixa etária de 45-54, ela é a principal causa de morte, tanto para mulheres como para homens.
A partir dos 75 anos, as doenças do aparelho circulatório ocupam o posto de principal causa de morte no Brasil (7.134,4 pessoas em cada grupo de 100 mil habitantes, das quais 3.471,4 do sexo feminino e 3.663 do sexo masculino). Essas doenças também respondem por um elevado número de óbitos entre as crianças de até um ano de idade (362,8 do sexo masculino e 287,1 do sexo feminino, perfazendo um total de 649,9 mortes a cada 100 mil habitantes).
A tabela 2, por sua vez, mostra que a relação entre temperatura e mortalidade é mais evidente nas equações de mortalidade por doenças do aparelho circulatório e por todas as causas de morte. Os dados indicam que, estatisticamente, a relação mais clara entre temperatura e mortalidade se dá para as mortes relacionadas a problemas do aparelho circulatório. Os resultados do estudo sugerem que a perda de bem-estar relacionada à saúde poderá chegar a 4,7% do PIB (Produto Interno Bruto).
Outro dado relevante deste trabalho refere-se ao aumento do consumo residencial anual de energia que, devido ao uso de aparelhos que protegem a saúde dos efeitos danosos do clima, foi estimado em aproximadamente 6%. A previsão é de que o consumo residencial anual per capita de energia elétrica no Brasil venha a crescer de 17,8 kWh a 26,5 kWh entre 2070 e 2099.
MAIS EVIDÊNCIAS O próximo relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), o quinto de uma série, a ser divulgado no ano que vem, reunirá ainda mais evidências dos impactos das mudanças climáticas sobre a saúde das pessoas. “São intensificações de problemas conhecidos, como chuvas e secas intensas. Não são problemas novos”, adianta o médico e pesquisador Ulisses Confalonieri, representante do Brasil no órgão intergovernamental.
Mais de mil cientistas de mais de 100 países participam do relatório a ser divulgado em 2014, dez dos quais são membros do comitê específico de saúde, entre eles Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Japão e China. O novo relatório culpa os países mais desenvolvidos pela poluição do planeta e recomenda que paguem mais por isso. “Esses países podem sofrer impactos graves, tanto quanto os outros. Lembre-se do furacão Katrina, em Nova Orleans (2005), nos Estados Unidos, e da onda de calor que matou 52 mil pessoas na Europa em 2003”, adverte Confalonieri.
MAPA DA VULNERABILIDADE No Rio de Janeiro, as alterações climáticas podem ser observadas, dentre outros aspectos, na elevação da ocorrência de catástrofes naturais, como as chuvas mais intensas, que provocam inundações e alagamentos, além de problemas de saúde da população, como o aumento dos casos de dengue e leptospirose, e pelo número de mortes ocasionadas pela intensificação destas chuvas. Pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e a Fiocruz-Minas, desenvolveram o Mapa de vulnerabilidade da população dos municípios do Estado do Rio de Janeiro frente às mudanças climáticas. A iniciativa tem como objetivo indicar a exposição dos municípios do estado às mudanças climáticas previstas para os próximos 30 anos.
O estudo, realizado pela Fiocruz, foi definido a partir do Índice de Vulnerabilidade Municipal (IVM) às mudanças do clima. “Este índice é resultado da agregação do Índice de Cenários Climáticos (ICC/RJ) e do Índice de Vulnerabilidade Geral (IVG), formados por componentes de saúde, ambiental e social, como o número de doenças infecciosas influenciadas pelo clima, as características de cobertura vegetal e da fauna, além do acesso a trabalho, habitação e renda”, explica a coordenadora-geral do projeto, Martha Barata, pesquisadora em clima do IOC.
Os índices são apresentados em uma escala que varia de zero (0) a um (1), atribuídos aos municípios com menor ou maior vulnerabilidade, respectivamente. O índice de vulnerabilidade municipal classifica os municípios quanto ao grau de atenção que terá de ser dado frente às esperadas mudanças climáticas. Para o cenário climático mais pessimista, ou seja, com maiores emissões de gases de efeito estufa, foi identificado o conjunto de municípios da macrorregião metropolitana do Rio de Janeiro e o seu entorno como o mais suscetível aos impactos do clima.
Amazônia sofrerá graves impactos até 2100
Estudo internacional publicado no início deste ano pela revista da Academia Americana de Ciências (PNAS) alerta que mais de 10% da população mundial poderá ser seriamente afetada em 2100 pelas consequências das mudanças climáticas. Foram identificados, na investigação científica, os principais locais afetados pelo aquecimento global a partir da medição de aspectos fundamentais da vida humana, como a cultura, o acesso à água, ecossistemas e a saúde. Quanto mais prejuízo nesses setores, maior o impacto das mudanças climáticas. Para traçar esse cenário, os cientistas levaram em conta a não redução das emissões de gases de efeito estufa e um aumento de temperatura 4 ºC observado no período entre 1980 e 2010.
O sul da Amazônia, de acordo com o estudo, teria a maioria dos locais gravemente impactados. A previsão indica mudanças importantes nas condições de acesso à água potável e à agricultura, além de risco aos ecossistemas. A segunda região mais afetada será o sul da Europa, devido a uma maior dificuldade de acesso a recursos hídricos e consequente prejuízo nas colheitas. Outros “pontos quentes” do mundo estariam na América Central e regiões tropicais da África e partes da Etiópia. Algumas partes do sul da Ásia também sofreriam pelos mesmos motivos.
Os dados foram levantados por uma equipe de cientistas do Instituto de Pesquisa sobre o Clima de Potsdam, na Alemanha, e publicados pela revista da Academia Americana de Ciências, a PNAS. O estudo é o primeiro a identificar pontos específicos do impacto da mudança climática baseando-se em simulações computacionais, tanto para as alterações do clima quanto para seus impactos atuais. Segundo a pesquisa, os efeitos começarão a ser sentidos quando for registrado aumento da temperatura em 3ºC em relação à média registrada entre 1980 e 2010.
“Em relação aos demais municípios do estado, a população do município do Rio está entre as mais vulneráveis. Isso acontece em face aos seus elevados índices de vulnerabilidade da saúde e do ambiente quando comparados aos dos demais municípios do Estado. A cidade de Niterói apresenta o menor índice de vulnerabilidade social. No entanto, o IVG é elevado em função da maior vulnerabilidade da saúde e do ambiente”, assinala a especialista.
O estudo aponta que os municípios de Magé e Campos dos Goytacazes também apresentam vulnerabilidade acima de 0,50, média estadual, para os três indicadores que compõem o IVG. Já o município de Nilópolis apresentou-se como o menos vulnerável na escala, seguido de São Pedro da Aldeia (localizado na macrorregião das baixadas litorâneas) e Volta Redonda (macrorregião sul-fluminense), que também apresentaram baixa vulnerabilidade para os três indicadores.
A especialista alerta que o baixo índice apresentado por determinados municípios não significa ausência de risco. “O fato de o município ter recebido valor zero (0) para o IVM indica que este índice é o menor dentre todos os municípios, assim como o valor um (1) não significa que o município seja o mais vulnerável, mas que há uma instabilidade relativamente maior que os demais, devendo ser, portanto, objeto de atenção prioritária na implantação de políticas, planos e programas de adaptação à mudança climática”, afirma.
Municípios da macrorregião Costa Verde, como Angra dos Reis e Paraty, e da macrorregião serrana, como Petrópolis e Teresópolis, destacam-se pela elevada vulnerabilidade ambiental. “Estas macrorregiões devem estar atentas aos cuidados necessários para a proteção das florestas”, diz. Martha destaca a importância do estudo para a orientação de políticas públicas, a fim de apoiar as decisões estratégicas de adaptação aos efeitos projetados das mudanças do clima. “Este conjunto de informações permite a identificação desse hotspot metropolitano, mas os indicadores parciais também podem ser utilizados para a orientação de políticas setoriais, sejam de saúde, socioeconômicas ou de proteção ambiental”.