Incentivo à dedicação exclusiva

Especialistas criticam a reformulação do Programa Saúde da Família (PSF), que prevê redução do horário médico e propõem a valorização da carga horária integral.

Pouco tempo depois de entregarem ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, a “Agenda Estratégica para o SUS”, integrantes do movimento da reforma sanitária se dividem a respeito da decisão do governo federal de flexibilizar a carga horária dos médicos que trabalham no Programa Saúde da Família (PSF).  Para alguns especialistas, a medida prejudica mais do que contribui para a melhoria do atendimento do programa.

No intuito de solucionar a ausência de médicos do PSF e tornar a carreira mais atrativa, o governo lançou uma portaria na qual prevê, entre outras coisas, mais opções para a jornada de trabalho para os profissionais que atuam nesse campo: além das 40 horas semanais, eles poderão cumprir 20 ou 30 horas, com remuneração reduzida.

Para Gustavo Gusso, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a redução da carga horária não seria questionada se a carreira do profissional da atenção básica fosse valorizada no país, o que, em sua opinião, não acontece.  “O problema não é a redução da carga horária se a pessoa for ficar na atenção básica (ensino, pesquisa ou gestão). Mas tradicionalmente este é um campo desvalorizado no Brasil em que os profissionais ou se dedicam a uma atividade hospitalar ou privada e utilizam a atenção básica como um bico ou como um salário que servirá para aposentadoria. Não é possível ser intensivista e clínico geral ao mesmo tempo ou mesmo cardiologista e clinico geral”, critica.  Para ele, a medida chega a ser um retrocesso. “Esta situação é pior do que a pessoa fazer ‘bico’ alguns anos e depois sair da atenção básica como muitas vezes ocorria. Em outros países, (ver na tabela abaixo), a média é de mais de 40 horas semanais. O que vai ocorrer é a institucionalização de um erro”, dispara.

A pesquisadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde (ENSP/Fiocruz), Ligia Giovanella, também caminha em direção contrária à flexibilização ao defender o incentivo à dedicação exclusiva, passo já dado por países com experiências bem-sucedidas na área da Atenção Primária à Saúde. “Em países como a Espanha, que tem um Sistema Universal, a atenção primária é prestada em centros de saúde e os médicos têm dedicação exclusiva. No Sistema Único de Saúde (SUS) não enfrentamos essa discussão até hoje”, aponta a especialista para quem a medida, na prática, também prejudicará a chamada continuidade. “Discutir o risco da perda da continuidade é muito importante. Estamos falando de 30 horas que se transformarão na prática, em dois dias de trabalho, por exemplo. A existência da flexibilização e a inexistência de uma carreira na SUS comprometem a continuidade aos usuários”, acrescenta.

Ao se opor à reformulação do PSF, Gusso, assim como Lígia, lembra o modelo europeu e critica a opinião de alguns pesquisadores que, após o anúncio do governo, disseram não haver problemas na quebra da carga horária integral, uma vez que outros países fizeram o mesmo. “Eles (os pesquisadores) não estão levando em consideração que o modelo na maioria dos países da Europa é rígido, ou seja, não pode ir ao pediatra ou ao dermatologista sem passar pelo médico de família e todos têm que fazer alguma residência, sendo que 40% das vagas vão para medicina de família. Não há uma coisa sem a outra e apoiar a flexibilização da carga horária sem antes oferecer residência para todos com vagas reguladas significa na prática incentivar um mercado predatório”, defende.

Ligia sinaliza outro aspeto, segundo ela, ignorado pelo governo ao propor a medida: a generalização. “Nós temos questões regionais muito diferenciadas. Se avaliarmos o Amazonas, por exemplo, veremos um grande problema de ausência de médicos em relação à população local. Uma medida assim não pode se transformar numa regra para todos”, alerta ela que foi uma das coordenadoras da pesquisa “Estudos de caso sobre a implantação da Estratégia Saúde da Família em quarto grandes centros urbanos”, em 2008 (ver anexo)

Com mais de 15 anos de funcionamento, o PSF reúne inúmeras indicadores positivos. Mas ainda há muito que fazer. Para Gusso, o governo precisa mexer nos problemas estruturais como a formação médica. “O governo tem que intervir no modelo e na formação pós graduada, pois se deixar o mercado tomar conta, como já ocorre, vamos abrir 600 faculdades e o problema vai se agravar muito”, diz. Além disso, aponta, “é preciso regular as vagas de residência e criar condições de trabalho, que envolve um posto de saúde com prontuário eletrônico, ar condicionado nas salas, rede para encaminhar o paciente quando necessário etc… Não é tão raro no Brasil, como se apregoa, os locais que obtiveram sucesso e se aproximam muito de países europeus. O problema é que o governo nos últimos meses tem focado nos fracassos em vez de estudar melhor e divulgar os sucessos”, finaliza.

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