Informe sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde n°20/2021 – Cadernos CRIS/Fiocruz

Informe do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) da Fundação Oswaldo Cruz sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde No. 20/2021 publicado em 02 de dezembro de 2021. Veja a seguir a apresentação e acesse a publicação na íntegra no final do texto.

Apresentação

A quinzena sobre a qual se debruçam os analistas do Cris vinha marcada por dois espaços políticos de extrema relevância para a saúde global e a diplomacia da saúde: a Sessão Especial da 74ª. Assembleia Mundial da Saúde (AMS), para discutir o estabelecimento de um tratado internacional sobre pandemias; e a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), para debater a flexibilização de patentes para as vacinas da Covid-19. Contudo, quem roubou a cena a ambos os temas foi o responsável anúncio, pelas autoridades sanitárias da África do Sul, da detecção de uma nova variante de preocupação do coronavírus pandêmico, registrada como variante Ômicron, mais uma letra do alfabeto grego para designar uma fita de RNA que sofreu mutações e passou a ser o novo terror da população mundial. Desde então, já chegou há mais de 50 países, nos cinco continentes, inclusive no Brasil. O apartheid de vacinas gerou esta e tem potencial de gerar novas variantes, até piores.

Proibição de entrada de viajantes oriundos de países da África Austral passou a ser praticada em diversas fronteiras, em todo o mundo. Fechar fronteiras aos africanos, ao invés de apoiar o enfrentamento da pandemia nos países afetados é definitivamente uma injustiça, aliás, apenas uma entre muitas que o mundo vem vivenciando nestes dois estranhos anos da história da (des)humanidade. Nesse contexto, Xi Jin Ping não perdeu tempo, e anunciou a doação de 1 bilhão de doses de vacinas chinesas ao continente; porque não o fez antes, é uma incógnita, mas trata-se de inegável avanço, se de fato se materializar.

Mia Couto e Agualusa, dois intelectuais africanos muito queridos dos brasileiros, rapidamente vieram a público expressar sua decepção com as medidas discriminatórias contra a África do Sul e outros países da África Austral, e protestaram em folhas tupiniquins, no que foram ecoados por diversos colunistas e movimentos sociais.

Testes negativos e passaporte de vacinas para Covid-19 passaram a ser exigidos pela vigilância de fronteiras em diversos países, apesar de elas não estarem distribuídas equitativamente no mundo, assim como quarentenas e outras medidas restritivas. A OMS ampliou a prontidão e convocou os países a estudar o comportamento epidemiológico e clínico da nova variante para saber se, além de mais contagiante, ela produz doença mais grave e é mais letal; já as farmacêuticas iniciam testes para avaliar a capacidade protetiva de suas vacinas contra a Ômicron. No Brasil, persiste um conflito de orientações entre o Ministério da Saúde e a Anvisa quanto às exigências que serão adotadas nos aeroportos e fronteiras.

Em diversas partes do mundo, o passaporte vacinal também passou a ser exigido para permitir a circulação em determinados espaços nas cidades, como restaurantes, shoppings e igrejas e, em muitas destas cidades, até mesmo no transporte público.

No Brasil, um surto de gripe sazonal acomete grandes cidades que não conseguiram alcançar níveis adequado de vacinas contra a enfermidade; por outro lado, em favelas e comunidades pobres, a própria 2ª dose da vacina contra a Covid-19 é aplicada com maior atraso que em zonas mais abastadas. Enquanto isso, centros de pesquisa e universidades queixam-se dos entraves financeiros e logísticos que enfrentam para a produção de uma vacina brasileira contra o coronavírus. Já a Interfarma, com propaganda na grande imprensa, e certamente com lobbies parlamentares, vai à luta contra a legislação de flexibilização de patetes para produtos destinados ao combate da Covid-19 aprovada pelo Congresso Nacional, afirmando que isto desestimula investimentos em inovação. Engraçado, pois as grandes farmacêuticas multinacionais aplicam recursos irrisórios em inovações médicas em território pátrio!

Voltando à diplomacia global em saúde, nosso analista, Santiago Alcázar revisa os últimos acontecimentos na esfera das Nações Unidas, considerando que a Conferência da OMC possa ter sido adiada mais pela falta de consenso e do que anunciar ao mundo, do que propriamente pelas razões alegadas, a pandemia.

Na Organização Mundial da Saúde, em decisão consensual, a Assembleia Mundial da Saúde (AMS) concordou em iniciar um processo global para redigir e negociar uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional, sob a égide da Constituição da OMS, para fortalecer a prevenção, preparação e resposta a pandemias. A resolução intitulada ‘O mundo juntos”, estabelece um corpo de negociação intergovernamental (INB), como nos informa Guto Galvão. A primeira reunião do grupo ocorrerá em 01/03/2022, visando acordar as formas de trabalho e cronogramas, e a segunda em agosto de 2022, para discutir o andamento do processo. Também realizará audiências públicas, visando informar sobre suas deliberações, entregará um relatório de progresso à 76ª AMS, em 2023, e os resultados finais à 77ª AMS, em 2024.

Para o diretor da OMS que, segundo Galvão, fez um discurso profundo e emocionante na abertura da Sessão Especial, a decisão representou uma oportunidade única, em uma geração, de fortalecer a arquitetura global de saúde com o estabelecimento de uma convenção vinculante. Para atores globais mais exigentes e críticos, como parcelas ativas da sociedade civil, a decisão posterga a tomada de medidas urgentes necessárias para um período excessivamente distante.

Boa parte dos líderes da saúde global, ministros da saúde dos estados-membros, abordou os desafios da nova variante, levando quase ao ostracismo o tema central da reunião, que era o tratado sobre pandemia. Representados por Botsuana, que falou na sessão especial em nome dos estados-membros da União Africana, os países africanos abriram fogo quanto ao que consideraram discriminação, tratamento desigual em relação a outros países que reportaram variantes de preocupação anteriormente, falta de apoio e solidariedade diante das grandes dificuldades com que passam a viver os países afetados da África Austral. E sem acesso à vacinas. O Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, também bateu com força inusitada.

O debate que ocorre no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em torno a um Tratado sobre o Direito ao Desenvolvimento torna-se crucial, segundo De Negri, para materializar uma abordagem sistêmica dos direitos em favor do enfrentamento das desigualdades estruturais entre e em cada um dos países, estabelecendo o dever de cooperar em favor e não afetar negativamente o direito ao desenvolvimento de todos os povos e nações. O Direito ao Desenvolvimento, ao demandar uma nova ordem econômica internacional, estabelece as condições estruturais necessárias para prover, mediante relações políticas e econômicas justas, os meios para o exercício da soberania e da auto determinação de nações e povos como forma imediata que colocar em pauta a superação das barreiras de acesso à infraestrutura social e sanitária, sem o que, o enfrentamento das injustiças históricas de acesso, que hoje determinam a assimetria na resposta à pandemia, não serão superadas.

De igual forma se traduz como objetivo superior o avanço no Tratado sobre os Direitos Humanos e a ação das empresas transnacionais, as quais hoje exercem poderes fora do controle de muitos Estados e, portanto, fora do controle dos regimes democráticos, ou seja, dos povos, na definição dos seus interesses e necessidades, o que se translada para a imposição dos direitos de propriedade intelectual e os interesses financeiros sobre os próprios direitos humanos ao direito ao desenvolvimento como aspiração coletiva.

Finalmente, completa De Negri, cabe reforçar a necessidade de entender onde se situam os princípios fundamentais dos direitos humanos na promoção de um novo contrato socioambiental e pela paz, onde a soberania de povos e nações projete as formas mais efetivas de construir bem estar mediante sistemas amplos e universais de proteção social que redistribuam ativamente as riquezas escandalosamente concentradas para que os direitos humanos encontrem sua materialidade na vidas de todas as sociedades do mundo.

Para Ungerer, o destaque desta semana do UNOSSC foi a realização online da segunda sessão técnica da Conferência Internacional Interministerial para discutir a cooperação triangular pós BAPA+ 40, particularmente referido ao desenvolvimento populacional (ICPD) e Agenda 2030. O evento marcou a nova forma de trabalhar e pensar imposta pela pandemia de Covid-19, que passou a exigir esforços de inclusão e inovação, favorecendo a cooperação triangular, que exige um aprendizado compartilhado, no qual a relação entre parceiros e beneficiários é crucial. Depois de quatro anos de ausência, o UNOSSC anunciou para 2022 a décima primeira GSSD Expo, que será realizada em setembro, na Tailândia.

Quanto ao G-77 e a China, o grupo participou de quatro reuniões da UNGA em temas sobre o a mitigação sísmica e projeto de substituição do ciclo de vida na Comissão Econômica e Social para a Ásia e Pacifico; o padrão das conferências da ONU; o sistema comum das Nações Unidas e o pedido de subvenção para o tribunal especial residual da Serra Leoa. O destaque do MNA foi a realização da cúpula de alto-nível para celebrar os 60 anos do movimento. Tudo isso vem comentado por Ungerer no seu informe sobre este conjunto de instituições.

Na OEA, como nos conta Bermudez, o que segue em evidência é a situação da Nicarágua, com pronunciamentos da CIDH e uma avaliação coletiva do Conselho Permanente.

O fechamento da quinzena do G20 traz notícias sobre o desempenho da presidência italiana durante o ano de 2021 e as expectativas para o próximo ano, com a Presidência da Indonésia. Temas como recuperação econômica pós Covid-19 e desenvolvimento inclusivo e sustentável mantêm-se nas agendas. Para Burger et al, a possibilidade de mudança na geopolítica na região pacífico-asiática adquire espaço via G20, com expectativas de aumento da liderança indonésia na região. Já na OCDE, nesta quinzena, mais informações do Relatório Health at a Glance e a expectativa pelo lançamento do Relatório sobre o panorama econômico mundial (World Economic Outlook) de 2021.

Segundo Cazumbá, no Banco Mundial, BID e FMI continuam as iniciativas bilaterais e multilaterais, impulsionadas pelas incertezas em relação ao fim da pandemia.

Hoirisch reporta em seu informe sobre o seminário ‘Qual o futuro dos BRICS?’, bem como informa que cientistas de quatro países BRICS estão realizando sequenciamento genômico e modelagem matemática sobre a pandemia de Covid-19

Na última semana, o número de casos de Covid-19 aumentou 23% na região das Américas. A maior parte dos novos casos concentra-se na América do Norte, mas há aumento significativo também em alguns países da América Latina e Caribe. Para Tobar e Minayo destacaram-se, na última quinzena, a XLIX Reunião de Ministros do Mercosul; a publicação Impacto da COVID-19 nas cidades fronteiriças do Mercosul; o primeiro Atlas de Vulnerabilidade Hidroclimática da Amazônia, lançado pela OTCA; o evento de apresentação das iniciativas nacionais e regionais de produção de vacinas do PROSUL; a reunião da SEGIB, na qual os chanceleres concordaram em fortalecer a resposta à Covid-19 e elegeram o novo Secretário-Geral Ibero-Americano; e a publicação do novo relatório da CEPAL sobre feminicídios ocorridos em 2020 na ALC à sombra da pandemia. A Unesco divulgou estudo realizado em 2019 no qual mostra que a ALC não tem feito progressos em educação; temem-se as consequências da pandemia sobre a educação em 2020 e 2021.

Em África, como já foi mencionado, o destaque foi a detecção da e reações à variante Ômicron, que levou a diplomacia do continente africano, aliado a vozes de apoio ao redor do mundo, a se insurgir contra as medidas tomadas pela maioria dos países ricos para o isolamento da África do Sul e demais países da África Austral, contado ao leitor por Augusto Paulo e Rosenberg. No polo positivo, fica reportado o Fórum para a Cooperação China-África, realizado no Senegal; confira!

A Europa vive cenário paradoxal, com uma onda avassaladora de novos casos, hospitalizações e mortes por Covid-19 se avolumando no continente, enquanto a nova variante é anunciada na África do Sul. Novas medidas de isolamento e vacinação obrigatória são recebidas com protestos pela Europa, que volta a fechar suas fronteiras. A política europeia para a pandemia se centra nas novas variantes e se materializa no inverso do ditado brasileiro que diz que ‘prevenir é melhor do que remediar’, conforme Freire, que analisa a Europa para este informe. Já a União Europeia anuncia a mobilização de 300 bilhões de euros em infraestrutura de desenvolvimento até 2027 para conter a influência chinesa com a Iniciativa do Cinturão e da Rota, comentada em edições anteriores na secção sobre China.

Nova cepa, outras ondas, futuro climático, xenofobia, refugiados, direitos fundamentais sob ataque e bipolaridade em um mundo fragmentado. Os países da Ásia Pacífico e Oriente Médio precisam lidar com as novas ondas de Covid-19 – e agora com a nova cepa Ômicron – (fechamento de fronteiras, novo lockdown, apartheid? escape da vacina?); com seus problemas internos (econômicos, tecnológicos, movimentos anti-vax, protestos, eventos climáticos); com as questões regionais (perseguições étnicas, conflitos armados e milhares de refugiados) e globais, como o efeito borboleta da bipolaridade sino-americana (falta de consenso em fóruns plurilaterais, premência em não escolher um lado, medo de uma guerra armada). E tudo ao mesmo tempo. Haja bom senso! Mas também ciência, diplomacia e inteligência geopolítica. E “costurando” todos esses temas, a Saúde em todas as políticas pode ser a esperança. É assim que Lúcia Marques entende a situação da diplomacia da saúde na vasta região que analisa.

Na China, o Conselho de Estado divulgou um white paper sobre as relações entre África e China. O documento afirma que o continente possui o maior número de países em desenvolvimento e que a China é o maior país em desenvolvimento, criando oportunidades para cooperação entre africanos e chineses. Conforme nos relata Lobato, o documento intitulado “China e África na Nova Era: Uma Parceria de Iguais” destaca os princípios de “sinceridade, resultados reais, amizade e boa fé”. O Centro de Controle de Doenças da China publicou estudo sobre como seria a transmissão do coronavírus no país, caso o país adotasse as mesmas medidas que os EUA: segundo os autores, seriam 630 mil casos diários, com 10 mil pessoas sofrendo de sintomas graves. Segundo os autores, as estimativas são conservadoras, de forma que o fim da política de tolerância zero com o vírus poderia causar um número muito maior de infectados.

O Cris está em festa! Na próxima semana, depois de um ano de preparo, sai o nosso livro Diplomacia da Saúde: Respostas globais à pandemia, por Ediciones ALASAG, braço editorial da Alianza Latino-americana de Salud Global. E-book e instant book, com 32 capítulos, 455 páginas e mais de 60 autores, esta coletânea é produto do labor coletivo dos trabalhadores do Cris. Seus capítulos foram elaborados a partir do acompanhamento sistemático da saúde global e das respostas de atores-chave do cenário global da diplomacia da saúde à pandemia/sindemia, no transcorrer de todo o ano de 2021, tarefa realizada no âmbito do Observatório de Saúde Global e Diplomacia da Saúde do CRIS/Fiocruz. Destina-se aos profissionais de saúde e de diplomacia, assim como professores e estudantes destas áreas, ativistas sociais, dirigentes públicos nacionais e dirigentes de instituições multilaterais globais e regionais, sociedade civil, organizações não-governamentais e empresas atuantes em saúde global. Disponível para download em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/diplomaciada-saude_respostas_globais.pdf

Depois desta atividade continuaremos integralmente com as atividades internas de apoio à cooperação internacional da Fiocruz. Retornaremos com o primeiro volume da nova série de Cadernos Fiocruz de 2022 em 03 de fevereiro de 2022. Os Informes continuarão quinzenais, como até aqui; o primeiro número de 2022 analisará o que ocorreu no campo da saúde global e diplomacia da saúde nos meses de dezembro de 2021 e janeiro de 2022. A série também quinzenal de Seminários Avançados CRIS em Saúde Global e Diplomacia da Saúde 2022 reinicia em 09 de fevereiro de 2022, com o seminário Saúde Global e Diplomacia da Saúde: Perspectivas 2022.

Tenham todos uma boa leitura (deste informe e do livro), enviando-nos comentários e críticas sobre ambos, para que possamos alcançar o que desejamos: manter nossos leitores bem-informados para o exercício da plena cidadania.

Rio de Janeiro, Manguinhos, 02 de dezembro de 2021

Paulo M. Buss e Pedro Burger Coordenação do CRIS/Fiocruz

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