José Gomes Temporão: “Predomina neste governo postura medieval sobre as mulheres”

entrevista realizada por Marcelle Souza com o ex-ministro da Saúde e ex-presidente do CEBES José Gomes Temporão publicada originalmente no site Universa

Médico sanitarista, o ex-ministro da Saúde (2007-2010) do governo Lula, José Gomes Temporão, gerou debates ao defender a legalização do aborto às vésperas da visita do Papa Bento 16 ao Brasil. O ano era 2007 e o país tinha lançado havia pouco duas normas técnicas que até hoje servem de referência para a interrupção da gestação nos casos previstos em lei, afirmando que não é preciso boletim de ocorrência nem decisão judicial para ter acesso ao procedimento.

Treze anos depois, no entanto, os protocolos do Ministério da Saúde e o próprio Código Penal, de 1940, ainda não são respeitados pelos serviços públicos, como no caso da menina do Espírito Santo. “Na prática, o aborto é largamente realizado no Brasil em condições bastante seguras pela classe média e pelos estratos mais ricos da população. O que é criminalizado, o que é objeto de controle, e o exemplo dramático da menina do Espírito Santo é muito pedagógico, é o aborto de mulheres e meninas pobres, mulheres e meninas negras”, afirma Temporão.

Em 2018, ele participou, enquanto membro da Academia Nacional de Medicina, da audiência pública no STF (Supremo Tribunal Federal), defendendo a legalização do aborto. “O que nós queremos é que se insira definitivamente na legislação brasileira o direito da interrupção, por decisão da mulher, até a 12ª semana de gestação”, diz.

Em entrevista a Universa, o ex-ministro diz que nos últimos dez anos houve uma série de retrocessos na agenda de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, causada pelo corte gradual de recursos e por uma “postura medieval” que, segundo ele, predomina na gestão de Jair Bolsonaro. “Os setores conservadores agora estão mais mobilizados e organizados, o que exige que os movimentos de mulheres, os movimentos progressistas e os partidos políticos que defendem essa pauta se mostrem combativos e mais presentes”, afirma.

UNIVERSA: Por que é tão difícil conseguir fazer um aborto legal no Brasil?

Temporão: Na minha opinião, isso nunca foi tratado como uma questão de saúde pública, nunca foi abordado como uma decisão que compete às mulheres. Ao contrário, no Brasil, esse debate está profundamente contaminado por uma visão do aborto como crime, permeada por conceitos religiosos e um universo dominado por homens. Curiosamente, no caso da Igreja Católica, [por] homens que, em tese, não podem fazer sexo, que sequer se aproximam desse universo e que começam a prescrever normas e comportamentos que se entranham profundamente no coletivo.

Aí é extremamente difícil tirar o aborto do campo da religião para o campo da saúde pública, da defesa da saúde e do direito das mulheres. É por isso que infelizmente hoje o Brasil se alinha aos países mais atrasados do mundo em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Mesmo países muito católicos, como Chile, Argentina, Portugal, inclusive a Irlanda do Norte, avançaram bastante nos últimos anos, e aqui nós só vemos retrocessos.

Mas tem uma singularidade que eu queria chamar a atenção. Na prática, o aborto é largamente realizado no Brasil em condições bastante seguras pela classe média e pelos estratos mais ricos da população. O que é criminalizado, o que é objeto de controle, e o exemplo dramático da menina do Espírito Santo é muito pedagógico, é o aborto de mulheres e meninas pobres, mulheres e meninas negras. Então, existe aí um viés de desigualdade estrutural, de preconceito, que também é profundamente arraigado na sociedade brasileira.

E o que isso significa em tempos de pandemia? Qual é o impacto para as mulheres?

Eu acho que se agrava. Primeiro, em um momento de pandemia o sistema de saúde todo está voltado para a atenção à Covid-19. Já existem evidências de que aumentou o número de mortes em casa por outras causas, como doença cardiovascular, e também do aumento da violência contra a mulher, da dificuldade de acesso aos órgãos de defesa. Mas o que se percebe no Brasil é uma coisa que transcende a pandemia.

O próprio acesso aos serviços previstos em lei, principalmente desde o governo Michel Temer (2016-2018), tem sofrido uma desestruturação. De 2016 para cá, houve uma redução gradual de recursos não só para ações de combate à violência, mas também de educação sexual, por uma visão, que neste governo Bolsonaro é mais grave, medieval, da questão dos direitos sexuais e reprodutivos. Um bom exemplo é: na minha gestão, foi lançado em 2008 a caderneta do adolescente, um material distribuído em postos de saúde para crianças na faixa de 10 a 19 anos, que trazia informações sobre cuidados com o corpo, transformações na puberdade, relações sexuais.

Era um documento que trazia orientações sobre o uso do preservativo, a pílula do dia seguinte, indicativa fontes de informação, enfim, uma série de questões importantes. Em março do ano passado, a cartilha foi criticada pelo presidente da República e foi retirada do site do Ministério da Saúde. Na época, o presidente sugeriu aos pais que rasgassem as páginas com ilustrações sobre como usar o preservativo.

Esse tipo de postura medieval é que predomina neste governo. Inclusive o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos defende a abstinência sexual não só como método para reduzir a gravidez na adolescência, mas também como prevenção para doenças sexualmente transmissíveis. É difícil acreditar, mas isso está está acontecendo, tem um peso muito grande e se reflete em casos como esse que nós estamos acompanhando [da menina].

Nos anos 2000, o Brasil era referência para outros países da América Latina por conta da criação de normas técnicas que tratavam sobre aborto em caso de violência sexual. Mas hoje alguns países parecem ter avançado mais nesses protocolos. O que deu errado?

Não é que tenha dado errado. Você tem razão, houve uma conjuntura mais favorável, mas eu me lembro que, em 2007, quando eu defendi a questão do aborto como problema de saúde pública, houve uma grande polêmica, coincidindo inclusive com a visita do papa [Bento 16] ao Brasil. Na época, as redes sociais não tinham esse protagonismo, mas teve movimento de rua, militância contra, e também muita solidariedade a favor das minhas declarações.

Eu acho que a sociedade brasileira estava caminhando para atingir um certo grau de maturidade, que permitiria discutir com transparência essa questão [do aborto], que é a 4ª causa de morte materna no Brasil. Nós estávamos nesse processo. Em Portugal, por exemplo, foi necessário realizar dois plebiscitos para que o aborto passasse a ser visto como um problema de saúde pública. Então é um processo longo, que passa pelo grau de educação.

O que nós tivemos mais recentemente, nos últimos quatro anos, foi uma ruptura, um retrocesso, a eleição de um governo que tem essa visão muito atrasada, profundamente prejudicial para os direitos de meninas e mulheres.

José Gomes Temporão

Quando nós assistimos a esse circo de horrores, que foi como essa criança de dez anos foi tratada, passa uma certa sensação de desalento, de perda, de fragilização da caminhada. Mas eu vejo como um processo. Isso se enfrenta com mais divulgação, com mais debate, com mais denúncias, com firmeza.

Tem que tirar o véu que normalmente recobre esse tema de cinismo, hipocrisia, machismo, misoginia, que é muito forte na sociedade brasileira. Não acho que o que esteja acontecendo hoje seja uma tendência inexorável, pelo contrário. Vejo como um momento muito negativo, altamente prejudicial, mas que vai ser superado.

Na época, o senhor foi repreendido pelo presidente Lula por assumir essa postura? Houve algum tipo de pressão política ao se posicionar pelo aborto legal?

Quando eu dei essa declaração [de que era favorável à legalização do aborto], foi em um contexto de uma longa entrevista, eu não havia discutido esse tema dentro do governo. Expressei a minha opinião como médico, como sanitarista, como ministro. E eu me lembro que toda a mídia foi ao presidente da República [Lula] e perguntou o que ele achava das minhas declarações. E ele repetiu “eu concordo que é um problema de saúde pública, mas o governo acha que essa questão tem que ser discutida no Congresso Nacional”. Foi a posição dele. Não houve, em nenhum momento, um questionamento em relação à minha posição.

A gente sabe que o Congresso Nacional era e é majoritariamente contrário à essa questão, é dominado por homens, conservadores, e a bancada evangélica tem um peso muito grande. Quando você olha outros países, grande parte dos que incluíram o aborto como um direito das mulheres o fizeram por uma decisão do STF, como os Estados Unidos e vários países europeus. Então nós temos a estratégia de levar essa questão para o Supremo, embora a gente saiba das dificuldades, considerando que o Congresso é um espaço extremamente hostil para qualquer possibilidade de avanço nesse sentido.

Mas eu creio que o processo político, o gradual amadurecimento dessa questão, o aumento da informação é o que vai nos levar a uma solução favorável às mulheres. Voltando à tua pergunta, eu mantive a minha posição ao longo de toda a minha gestão [à frente do Ministério da Saúde], mas nunca recebi puxão de orelha do presidente por isso.

Mas da sua mãe o senhor recebeu?

Isso com certeza! Ela reclamou bastante, foi complicado [risos]. Muito católica, aí você já viu, né? Ali a minha posição era bastante clara, porque eu sempre acreditei nisso e continuo militando em defesa das mulheres.

O senhor acha, então, que a melhor saída para lidar com a legalização do aborto é por meio do Judiciário?

Nós temos essa ação no Supremo [ADPF 442], há uma grande expectativa de que, como aconteceu em outros países, o Judiciário possa recolocar essa questão em outros termos. Lembrando que já houve um importante avanço em 2012, autorizando que a mulher decida sobre a interrupção ou não em caso de anencefalia. Isso foi um grande avanço, mas muito parcial. O que nós queremos é que se insira definitivamente na Legislação brasileira o direito à interrupção, por uma decisão da mulher, até a 12ª semana de gestação, que é o que a maioria dos países do mundo segue.

Na Argentina, o presidente Alberto Fernández foi eleito com a promessa de apresentar um projeto de descriminalização do aborto. No Uruguai, o ex-presidente José Mujica também se posicionou a favor dessa pauta no debate sobre a legalização, em 2012. Por que no Brasil essa tema ainda parece ser um tabu entre políticos?

É e não é. Na verdade, o aborto é realizado cotidianamente pelas mulheres de classe média e ricas, que podem ter acesso a métodos seguros de interrupção da gravidez. Mas a criminalização afeta mulheres pobres, negras, com menor grau de escolaridade, menor acesso à informação. Ou seja, para quem faz e para quem tem acesso, a visão é de uma tolerância escondida, ninguém fala do assunto.

Há um véu de cinismo, de hipocrisia sobre essa questão [do direito ao aborto], que nunca é discutida de maneira séria, aberta, franca, transparente e conduzida pelas mulheres, que são as principais interessadas.

José Gomes Temporão

Há um misto de preconceito, conservadorismo, hostilidade por parte de muitos homens, ignorância. Mistura-se deliberadamente questões de fundo religioso, visões conservadoras, uma pitada de negacionismo também (porque está na moda, né?) e o resultado é essa coisa hipócrita, porque sabe-se que as mulheres que têm condições interrompem [a gestação] sem nenhuma dificuldade.

Quando você faz uma análise de quem morre por um abortamento no Brasil, são as mulheres pobres, negras, com menor acesso à informação, que não podem pagar por um procedimento seguro como as de classe média e as ricas.

Em 2009, o bispo de Olinda e Recife excomungou toda a equipe médica e a família após interrupção da gestação de uma menina de 9 anos. Agora, um grupo religioso foi até o hospital para barrar o aborto da garotinha. São casos semelhantes?

O padrão é o mesmo, o grau de agressividade, de desprezo pela vida, de desprezo pelo sofrimento é o mesmo. O que deu mais segurança a esses setores é que agora eles têm um governo aliado, um respaldo, inclusive há denúncias de violação da lei pelo próprio ministério da ministra Damares. Desse ponto de vista, os fundamentos são semelhantes.

A expressão é que aumentou, ganhou em amplitude, tanto pelas redes sociais, que à época estavam engatinhando, como pelo fato de ter agora um governo aliado, o que dá mais segurança a essas pessoas para que cometam desatinos, como expor os dados pessoais da criança, seu endereço, seu nome, enfim, o que é de uma extrema e profunda gravidade.

O que me inquieta é perceber que há ainda uma certa inação, uma certa paralisia do Judiciário, do Ministério Público, de mandar prender as pessoas que cometeram esses crimes, que sejam processadas e que isso sirva como uma postura pedagógica para que episódios lamentáveis como esse não se repitam no futuro.

José Gomes Temporão

Apesar desse avanço conservador, houve pontos positivos na agenda de direitos sexuais e reprodutivos na última década no Brasil?

Não consigo ver onde teríamos avançado. Os retrocessos, inclusive, começaram bem mais cedo, como quando as comunidades terapêuticas de fundo religioso, já no governo Dilma [2011-2016], começaram a ser utilizadas para o tratamento de pessoas que são dependentes de álcool e outras drogas. E no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, no acesso à informação, aos serviços que garantem o abortamento seguro no caso que a legislação permite, tudo isso foi fragilizado. Eu me lembro de uma cartilha que eu e o [então ministro da Educação, Fernando] Haddad lançamos em 2010 junto com a Unesco.

No começo de 2011, o ministro Alexandre Padilha [sucessor de Temporão na Saúde] começou a distribuição da cartilha, que foi interrompida por pressão da bancada evangélica. Isso tem impactos dramáticos, por exemplo, no aumento da incidência do HIV em jovens. As estratégias usando as mídias sociais, rádio e TV, de abordagens educativas para a prevenção da Aids e doenças sexualmente transmissíveis, tudo isso perdeu espaço, perdeu qualidade. Hoje a sífilis é uma das doenças venéreas que mais crescem no Brasil.

Toda essa postura traz mais dor, mais sofrimento, mais mortes e mais iniquidade. Porque os jovens que têm acesso à educação, à informação, aos métodos, se protegem, e isso afeta de maneira desproporcional as crianças e jovens que se inserem de maneira diferenciada na estrutura social.

José Gomes Temporão

A caderneta do adolescente, lançada em 2008, sofreu algum tipo de pressão política?

Na minha época não houve questionamento algum. Durante os quatro anos [de 2007 a 2011] em que eu fiquei como ministro não houve qualquer iniciativa —podia haver crítica de parlamentar, mas isso nunca se expressou sob a forma de pressão— de tentar interromper ou mudar portaria. A partir de 2011, isso começou a acontecer. Durante o período em que eu estive no ministério não houve nenhum episódio desse tipo e eu jamais permitiria.

O Uruguai, antes de legalizar o aborto, adotou uma política de redução de danos, com acompanhamento da mulher que queria interromper uma gestação. Assim, a equipe de saúde fazia ultrassom antes e depois do procedimento, mas não podia receitar o medicamento. Isso acabou reduzindo a mortalidade materna. O Brasil, por meio do SUS, teria capacidade para concretizar esse tipo de política?

Em tese, sim. Eu acho que o SUS teria todas as condições de fazer isso, de organizar serviços, implementar política de redução de danos, de ampliar radicalmente o acesso à informação, à educação, aos métodos, à pílula do dia seguinte. Tudo isso é absolutamente factível. Só que, neste momento, se esbarra em uma barreira intransponível, que é a visão do governo, absolutamente impeditiva de qualquer tipo de avanço e altamente prejudicial aos direitos das mulheres. Então nós vamos ter que mobilizar a sociedade.

Meu otimismo vem de perceber que a sociedade viva, o movimento de mulheres, o movimento negro, tem uma nova geração, com uma nova visão muito mais libertária, mais progressista do que a que nós estamos assistindo agora.

Então eu não sou pessimista a longo prazo, mas moderadamente pessimista no curto prazo. Infelizmente, neste momento não há qualquer vislumbre de possibilidade de avanço.

José Gomes Temporão

O que pode ser feito agora para este debate?

O que nós estamos fazendo: impedir que essa questão seja deixada de lado. O que tem que ser feito agora é uma radicalização dessa militância em defesa da vida, da informação, da educação, da denúncia e do questionamento. Não se pode perder essa briga. Os setores conservadores estão mais mobilizados e organizados, o que exige que os movimentos que defendem essa pauta se mostrem combativos e mais presentes.