”Juro cumprir a Constituição”
* Eduardo Fagnani – O Estado de S.Paulo
Na posse de Dilma Rousseff chamou-me a atenção o conciso juramento dedicado ao cumprimento da Constituição, fundamento do Estado democrático. Veio-me à mente o fato de que, no tocante à seguridade social, nenhum dos seus antecessores cumpriu esse compromisso solene, a começar por Sarney.
A questão de fundo é que certos setores da sociedade resistem a aceitar essa conquista social. A mesma recusa se verificou em todos os governos desde 1988. Optaram por descumprir princípios fundamentais da organização e do orçamento da seguridade social (SS) e dos mecanismos que asseguram o controle social sobre os rumos das políticas de saúde, previdência e assistência social (Conselho Nacional da Seguridade Social).
Após 22 anos, percebo um conjunto de aparentes inconstitucionalidades. Digo aparentes porque, sendo economista, não tenho competência para comprovar com rigor esses pontos. Conclamo os juristas a participar desse debate. Fica a pergunta: não cabem ações diretas de inconstitucionalidade?
A primeira aparente ilegalidade é que o poder público jamais organizou a SS como rezam os artigos 165, 194, 195 e 59 – este último do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A Constituição de 1988 instituiu a SS integrada pelos setores da saúde, previdência e assistência social e seguro-desemprego (artigo 194). O artigo 59 dos ADCT estabeleceu prazos claros: “Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e de benefício serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los”. O parágrafo único complementa: “Aprovados pelo Congresso Nacional, os planos serão implantados progressivamente nos dezoito meses seguintes”. Esses prazos, todavia, não foram observados. Tais determinações – mantidas pela Lei Orgânica da Seguridade Social (1991) e pela Emenda Constitucional 20/98 – foram olimpicamente descumpridas. O Executivo jamais formulou o projeto de lei de organização da seguridade social, conforme reza, rigorosamente, a Carta Magna. Optou por formular projetos de lei setoriais separados e institucional e financeiramente desarticulados.
Para financiar a SS a Constituição introduziu o orçamento da seguridade social (OSS), um conjunto de impostos gerais e contribuições de empregados e empregadores vinculados ao financiamento dos setores da saúde, previdência, assistência e seguro-desemprego (artigo 195). A segunda aparente inconstitucionalidade é que o Executivo jamais apresentou o OSS, rigorosamente como reza a Carta Magna. Em primeiro lugar, como mencionado, o ponto de partida são os planos de custeio e de benefício dos setores que integram a SS (artigo 59 do ADCT). Em segundo lugar, uma vez consolidado o OSS, suas fontes e seus usos devem ser apresentados anualmente, numa peça única, visando à transparência e ao controle social: o parágrafo 5.º do artigo 165 determina que a lei orçamentária anual compreende o orçamento fiscal, o orçamento das empresas estatais e o orçamento da seguridade social, “abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público”. Esses preceitos constitucionais não foram cumpridos, com rigor, pelo Executivo.
A terceira aparente inconstitucionalidade é a captura dos recursos do OSS para outras finalidades não previstas na Carta de 88. Diversos estudos mostram que as contas do sistema sempre foram superavitárias. Em 2009, por exemplo, o superávit foi de R$ 32,6 bilhões, capturado pela área econômica. Esse desvio contradiz os artigos 194 e 195.
Em quarto lugar, destaca-se o desrespeito aos mecanismos de controle social. Para fiscalizar e verificar se o Executivo organizou a SS de acordo com o previsto no artigo 194 e se os recursos do OSS não foram desviados (artigo 195), a Constituição determinava que o poder público deveria observar o “caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados” (§ único, VII, do artigo 194, com nova redação dada pela Emenda 20/98: “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”). A ideia era criar o Conselho Nacional da Seguridade Social (o que ocorreu com a Lei 8.212/91. Entretanto, esse conselho nunca foi constituído. E mais grave: em 2001 a MP 2.216-37 revogou os artigos da lei que o havia instituído. Fica minha pergunta aos juristas: uma medida provisória tem força legal para extirpar um dos núcleos centrais da organização da SS, determinado pela Constituição da República?
Outra aparente inconstitucionalidade é a forma de o Ministério da Previdência e Assistência Social apresentar os dados da Previdência, desde 1989. O órgão não considera a previdência como integrante da seguridade. Parte do princípio de que a folha de salário do trabalhador urbano deve cobrir o gasto com o INSS urbano e o rural. O resultado é um “rombo” na Previdência por causa do INSS rural – na medida em que a previdência urbana é superavitária. Ora, insisto que os artigos 194 e 195 rezam que o INSS rural (não contributivo) deve ser coberto pelas receitas de impostos (Cofins, CSLL, etc.). Ao apresentar “déficit” do INSS rural, o Ministério comete o mesmo equívoco de sentenciar o “rombo” das contas do Legislativo, do Judiciário e das Forças Armadas (também financiadas por impostos).
Com sua notável biografia de luta pela democracia e pela correção demonstrada ao longo da sua vida pública, a presidenta Dilma poderá contribuir para a consolidação das conquistas sociais de 1988, o que passa por cumprir a Constituição, como jurou fazer ao tomar posse.
*PROFESSOR DO INSTITUTO DE ECONOMIA DA UNICAMP