Kenneth Camargo avalia o programa Mais Médicos
Em entrevista, ao portal do Lappis, Kenneth Camargo (IMS/Uerj) avalia o programa Mais Médicos. Confira! O debate sobre o Programa “Mais Médicos” do Governo Federal, lançado após a série de manifestações vem ganhando contornos polêmicos, principalmente após a chegada dos/as primeiros/as médicos/as com diploma estrangeiro para atuar no Brasil, no final do mês de agosto. São profissionais vindos/as de países como Espanha e Portugal, mas o alvo das críticas capitaneadas pelas entidades de médicos são os/as cubanos/as, dando ao episódio contornos de xenofobia e racismo, perseguição política e até mesmo declarações que, se levadas a cabo, violariam a ética médica e os direitos humanos.
Em entrevista, o pesquisador do Laboratório de Pesquisas Sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis) Kenneth Rochel Camargo Jr, professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), médico e pós-doutor na Mcgill University (Montreal, Canadá), faz reflexões sobre este primeiro momento do programa, partindo do início do Sistema Único de Saúde (SUS), que desde o início recebeu egressos do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), sem herdar o financiamento, ficando já desde o início subfinanciado, acarretando uma série de problemas, que acompanham a gestão do SUS até os dias atuais.
BoletIN– Como o Sr avalia este primeiro momento do Programa Mais Médicos do Ministério da Saúde?
Kenneth Camargo: Eu acho que não dá para falar do programa, sem levar em consideração algumas questões de contextualização importantes com relação à própria história do SUS, que tem vários problemas estruturais graves desde a origem. O primeiro passo importante que foi feito para a reestruturação do SUS, ainda na época da Constituição de 1988, foi a passagem do INAMPS para o Ministério da Saúde. Do orçamento total da Previdência Social, existia uma verba de 30% que era para essa assistência de saúde, do funcionário que tinha a Carteira de Trabalho assinada. Quando foi feito o repasse do INAMPS para o Ministério da Saúde, o orçamento não veio junto, então você tem uma distorção já na origem do SUS o que acarretou um problema estrutural histórico de 25 anos.
Em parte, eu acho que isso traz uma série de preocupações políticas, até mesmo por parte do movimento sindical, porque no momento em que fez-se essa passagem do INAMPS para o MS, houve quem dentro do movimento sindical brasileiro fosse contra, porque queria manter a situação de ter atendimento apenas para pessoas que têm carteira assinada, o que levaria à exclusão de boa parte da população brasileira, do direito à saúde. Isso ocorreu na mesma época do movimento de reforma sanitária, que discutia a criação de um Sistema Único de Saúde. O movimento sindical acreditava que todo acordo coletivo tinha que ter um plano privado de saúde. Então essa contradição interna também acompanha, mesmo dentro de um movimento que supostamente, seria ser defensor do SUS ela está colocada.
Isso leva a um quadro atual de uma situação, a grosso modo e simplificando, temos um sistema público como o SUS, que atende 70% da população mas que do ponto de vista de gastos com saúde do país isso responde a em torno de 40 a 45% do total de gastos com saúde, os outros 55 a 60% são privados e vão para dar conta de 30% da população.
BoletIN– E qual era o modelo pretendido para o SUS pelo movimento de reforma sanitária na Constituinte?
Kenneth Camargo: Quando começou a se desenhar esse quadro do sistema público de saúde na Constituinte, o horizonte para o qual a proposta para o SUS estava apontando era para o modelo do serviço nacional de saúde da Grã Bretanha, onde não existe o sistema privado. A ideia aqui também era esta, mas por várias razões isso não foi possível, a correlação de forças não era favorável. De alguma maneira, isso continua sendo um problema, porque criou uma série de distorções em todas as dimensões da prática e da formação profissional em função desta “necessidade” [entre aspas] de atender o mercado, que não dialoga muito bem com a saúde.
Fazendo uma análise do que está acontecendo agora, o sistema teve que buscar várias inciativas para dar conta dessas fragilidades e uma delas é exatamente o programa Mais Médicos, que já vem sendo discutido há algum tempo, mas que foi precipitado por essa onda de manifestações, para tentar dar uma resposta política. Esse é o problema, porque esta é uma discussão que está atravessada por uma partidarização e divide as opiniões entre quem é contra e quem é a favor do governo e isso sem discutir, a priori, o programa em si. Quem é contra o governo não vai poder admitir nunca que haja pontos positivos e quem é a favor não vai fazer nunca a crítica negativa e isso não agrega nada à discussão.
BoletIN– E diante dessa polarização, como o Sr. enxerga esta polêmica em torno do Programa Mais Médicos?
Kenneth Camargo: Há um problema de fato, de má distribuição de médicos no país, que é muito antigo. Tem um trabalho que foi feito na década de 60, pelo sanitarista Carlos Gentile de Melo, onde ele mostrava que havia uma grande relação entre municípios que não tinham médicos e outros que não tinham agência do Banco do Brasil. Se a situação econômica do município não comportasse o banco, não comportaria médicos e essa situação em certo sentido se agravou após a Constituinte, porque ficou muito fácil criar novos municípios e houve uma proliferação de municípios no país, que vivem essencialmente do Fundo de Participação dos Municípios. A maioria deles não tinha nem mesmo condição de sobrevivência econômica, quanto mais de ter agência de banco e consequentemente médicos, o que deixou uma situação difícil de ser resolvida e que perdura.
Dito isto, é claro que há problemas com o Mais Médicos. Não é só colocar médico onde não tem, que não vai resolver, mas acredito que deva ter um impacto positivo e não é interessante renunciar a mudanças pontuais e que possam trazer algum benefício, em nome de um “futuro perfeito”. Eu acho que isso não faz sentido.
Sabemos que no Brasil o SUS vive uma situação dramática e a priori, numa situação de um país menos desigual, isso não iria existir, mas isso não é motivo para não implementar a política, para começar a trilhar um novo caminho. Por exemplo, o Bolsa Família, que é considerado um “tapa buraco” [entre aspas] e até é, mas salva vidas e se é assim, eu sou completamente a favor e acho que não dá para abrir mão. Existem lugares no país em que as pessoas não têm acesso a médicos e, mesmo nos lugares onde há programa de saúde da família, há uma grande carência de profissionais formados para atuar na atenção básica e até mesmo muitos que atuam, não têm formação para trabalhar nesse modelo e isso também é uma limitação. Eu acho que é sim interessante suprir essa demanda com essas pessoas que vêm de fora e depois ir substituindo por profissionais locais.
BoletIN– Como o Sr está vendo os episódios mais pontuais de reação desfavorável ao programa?
Kenneth Camargo: Para resumir, eu acho que trata-se de um quadro complicado, em que tivemos episódios como o da jornalista que escreveu sobre o caso e disse que as cubanas têm cara de empregada doméstica, não de médicas. Temos o presidente do Conselho de Medicina em Minas Gerais, que disse que recusaria atendimento a vítimas de erro médico dos estrangeiros e que orientaria outros profissionais a fazer o mesmo. Como se não houvesse erro médico de outra ordem. Como se os médicos brasileiros não errassem. Isso é uma violação ética grave e se a pessoa que está à frente do órgão que deveria zelar pela profissão diz uma barbaridade dessas, é o testemunho exato do estágio a que chegamos de degradação, nunca antes visto.
Por fim cito o caso mais execrável, detestável que é o caso de perseguição política, não tenho outro termo, ao colega Sergio Cariri, da Universidade Federal de Pernambuco [UFPE], que se atreveu a aceitar ser tutor dos médicos do programa. Isso é macarthismo da pior espécie e eu acho que tem que ser amplamente denunciado e que temos que cerrar fileiras em torno deste colega, porque isso é uma violação de um direito básico e fere até mesmo princípios de ética profissional. Eu acho que ele não pode ficar sozinho nesta luta.
Eu acredito que nada justifica a reação enlouquecida – eu não tenho outra palavra para descrever isso – que as associações médicas vêm tendo e essa ideia de que, de alguma forma, o governo acusa os médicos brasileiros de não trabalhar não existe. É uma afirmação totalmente inócua. Honestamente, eu não consigo entender porque estão tão ofendidos e não consigo entender essa necessidade de desarmonizar, desqualificar a formação profissional de outros países, particularmente de Cuba.
Eu acho que um ingrediente complicado nesta história é de que a classe média brasileira é conservadora – pra não dizer coisa pior – e a maioria dos profissionais são oriundos desse segmento social, ou passa a ser e uma parte das raras exceções oriundas de camadas economicamente desfavorecidas que conseguem fazer uma faculdade de medicina, acabam esquecendo suas origens. De outro lado há quem supervalorize esses profissionais advindos da formação cubana, o que também não é verdade. E ainda há um outro discurso, que poderia estar em veículos de humor, de que essas pessoas estão vindo de Cuba para fomentar a revolução comunista. Isso não faz sentido nenhum.
Tem ainda a relação complicada entre a lógica de mercado e a política pública, de coexistência no mesmo espaço, o que não se faz sem contradição ou conflito. No caso atual, onde a lógica de mercado incide e se reflete na formação de especialistas, a maioria busca áreas como cosmética, estética e outras tidas como as que dão dinheiro. Isso gera uma distorção, já que para um sistema ideal, seriam necessários muito mais profissionais para a atenção básica. Há um desinvestimento dos profissionais de saúde na formação voltada para uma atuação no setor público e isso é, claramente, o panorama atual do país. Há uma certa “sabotagem do SUS” [entre aspas]. E esta é uma via de mão dupla, porque há uma responsabilidade do governo por não oferecer melhores condições de trabalho, melhores salários, mas isso não tira a responsabilidade da categoria, que também não se interessa em atuar no SUS.
Sabemos que a política de saúde de maneira geral tem uma série de problemas graves, retrocessos enormes acontecendo, como por exemplo à política de combate à Aids, o silenciamento com relação à questão do aborto. Eu acho que o espaço que se concedeu à bancada que se diz teocrática, independente da religião, e que quer impor uma lógica religiosa no espaço público, que é uma violação da própria Constituição.
Quanto ao mais, eu honestamente não consigo entender essa reação, principalmente por parte da categora. É uma leitura emocional e estranha, que eu não consigo encontrar nenhuma ressonância, nenhum sentido e acaba resvalando em situações complicadas, como os protestos que tem contornos de preconceitos diversos, como a xenofobia. Isso acaba com a possibilidade de você discutir os reais ajustes que precisam ser feitos no SUS.