Lenaura Lobato: ‘É difícil criar estrutura de renda básica eficiente sem uma concepção de política social ampliada’
artigo de Daiane Batista publicado originalmente no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE)
Em meio à pandemia da Covid-19, o Congresso Nacional aprovou o Auxílio Emergencial, que tem por objetivo fornecer proteção aos menos favorecidos, no período de enfrentamento à crise sanitária. Os parlamentares analisam, ainda, a proposta de transformar esse auxílio em renda básica permanente. Os impactos dessa iniciativa, tomada como política pública, em uma sociedade desigual como a brasileira são analisados nos podcastas abaixo pela socióloga Lenaura Lobato, coordenadora do Núcleo de Avaliação e Análise de Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense (NAP/UFF) e integrante do grupo de pesquisa Futuros da Proteção Social na América Latina e Brasil, do CEE-Fiocruz.
Para Lenaura, a política pública de renda básica pode ser importante no combate às desigualdades, mas sozinha não resolve o problema. “A renda básica é uma transferência de renda, uma garantia de renda mínima à população, e tem várias modalidades”, explica, observando que o conjunto de desigualdades que o país enfrenta decorre de diversos fatores, e, portanto, se a aquisição de uma renda mínima não estiver associada a outras políticas públicas de âmbito universal, com garantia de acesso independentemente da renda, a resolução se dará de forma precária.
“Quando se transfere uma renda e eventualmente as pessoas suprem as necessidades mais básicas, mas não conseguem resolver um conjunto de outras necessidades que são sociais, educacionais, de saúde, de acesso a emprego, e de moradia, enfim, não se atacam os marcadores que fazem com que a sociedade seja tão desigual. Não é só renda, embora renda seja o fator importante”, avalia.
Ainda segundo a professora, não há por parte do atual governo uma proposta robusta de política social e de combate às desigualdades. “Com a pandemia da Covid, o governo foi forçado a fornecer o auxílio emergencial, cujo primeiro valor proposto era bem baixo. O Congresso aprovou com valor maior, o que teve um impacto importante diante das condições dramáticas da pandemia”.
Lenaura destaca a experiência do Bolsa Família como o programa mais bem sucedido internacionalmente em termos de transferência de renda, no que diz respeito à associação de renda básica com outras políticas sociais. “É um programa enorme que embora tivesse problemas, é uma experiência de vários anos que deveria ser aproveitada pelos governos. Um dos aspectos mais importantes da democracia é a capacidade de os governos darem continuidade a políticas eficazes e eficientes, e o Bolsa Família deu todas as comprovações de que é uma política eficaz e eficiente”, aponta.
“Quando se transfere uma renda e eventualmente as pessoas suprem as necessidades mais básicas, mas não conseguem resolver um conjunto de outras necessidades que são sociais, educacionais, de saúde, de acesso a emprego, e de moradia, enfim, não se atacam os marcadores que fazem com que a sociedade seja tão desigual“
A pesquisadora destaca, ainda, a importância das condicionalidades que compõem o Bolsa Família, como a obrigatoriedade de as crianças permanecerem na escola, com uma frequência mínima, a obrigatoriedade de acompanhamento do calendário de vacinação e, principalmente, de acompanhamento das mulheres gestantes, incorporando crianças no sistema educacional e as famílias no Sistema Único de Saúde.
“Isso foi feito de uma forma bastante apropriada, sem transformar a condicionalidade em um mecanismo de punição. Foi uma estrutura bem pensada de acompanhamento que, embora fosse um benefício conduzido pela estrutura federal, foi partilhada pelos municípios e incorporada ao Sistema Único de Assistência Social (Suas). Então, não é só uma transferência de renda, tem uma estrutura de serviço que dá suporte a essa transferência para buscar acompanhar as famílias. E, isso funcionou como elemento importante para tirar essas famílias de condições de desigualdade dando a elas acesso aos serviços públicos sociais”, considera.
“A ideia de que o pobre é pobre porque não se esforçou e porque não quer trabalhar é uma lógica no fim das contas que nega o assistencialismo, mas ela é assistencialista porque supõe e não acredita na capacidade da população de se empenhar“
Ela observa que, no entanto, não há previsão de o mesmo acontecer com auxilio emergencial. “Ao contrário, temos muitas dúvidas em relação à condução ou investimento deste governo no Sistema o Único de Assistência Social. Na verdade, a experiência do auxílio emergencial foi uma experiência contrária. É muito difícil criar uma estrutura de renda básica eficiente sem uma concepção de política social ampliada”, afirma Lenaura.
Para Lenaura, a lógica do governo atual é a lógica do controle de gastos, do controle de recursos e, principalmente, a lógica da desconfiança em relação ao pobre e ao vulnerável. “A ideia de que o pobre é pobre porque não se esforçou e porque não quer trabalhar é uma lógica no fim das contas que nega o assistencialismo, mas ela é assistencialista porque supõe e não acredita na capacidade da população de se empenhar”, destaca.
“A proposta que tem é de redução de gasto e de privatização. Em relação a emprego, alega-se que temos uma sobrecarga de gastos e a saída é a retirar direitos dos trabalhadores“
Lenaura aborda, também, a política de renda básica associar-se à promoção de pleno emprego e trabalho decente no Brasil, o que, para ela, não há no momento perspectiva de acontecer. “A proposta que tem é de redução de gasto e de privatização. Em relação a emprego, alega-se que temos uma sobrecarga de gastos e a saída é a reduzir os direitos dos trabalhadores, retirar direitos, como foi com a reforma trabalhista e com a reforma da Previdência. E, agora, outra perna é estimular é desoneração da folha. Há também, a proposta da Carteira Verde e Amarela”, acrescenta, referindo-se à medida provisória (MP 905/19) que vai permitir o registro por hora trabalhada de serviços prestados pelo trabalhador para vários empregadores. Não haverá cobrança de encargos trabalhistas, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da contribuição previdenciária.
Para Lenaura, há uma preocupação, cuja lógica é exclusivamente ou prioritariamente fiscalista e é isso vai de encontro à perspectiva de ampliação do gasto. “Podemos ver as desigualdades e as necessidades da população ou como gasto ou como investimento, e o governo vê tudo como gasto”, avalia.
Segundo a socióloga, estudos mostram que a longevidade no acesso a renda básica faz com que os indivíduos construam alternativas para sair da pobreza. “Não se pode considerar que a entrega da renda se dá no mesmo patamar da busca do emprego, da qualificação do emprego. São dimensões muito distintas. Os estudos, inclusive, mostram que, para haver melhora nas condições de vida e na redução da pobreza dos mais vulneráveis, a renda tem que ser extensa e continua, não uma coisa que você entrega por três ou quatro meses, oferece uma qualificação e o indivíduo terá uma porta de saída. Isso não funciona”.
Ouça abaixo os podcasts:
Renda básica, um fator importante no combate as desigualdades
Desigualdades: gasto ou investimento?