Lenir Santos: Abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde

Por Lenir Santos*.

 

O título destas breves notas é o do capítulo XII do Projeto de Lei de Conversão n. 18, de 2014, da Medida Provisória n. 656, de 2014. O título causa espécie por ferir frontalmente a Constituição que veda a participação de empresas e capital estrangeiro na saúde brasileira, de forma expressa.

O título é uma afronta à Carta Constitucional que vedou ao capital externo, as atividades de assistência à saúde. A regra é a vedação, com as ressalvas da lei. Exceções criadas por lei não podem significar a abertura ao capital estrangeiro das atividades de assistência à saúde, conforme pretende o referido projeto de lei, com escancarado título. Além da patente inconstitucionalidade, causa espécie afrontar a Constituição dessa forma. A ousadia é patente ao se abrir ao capital externo a atividades vedadas pela Constituição.

É a redação do art. 199, § 3º da Constituição:

Art. 199.
(…)
§ 3º. É vedada a destinação a participação direta e indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde do País, salvo nos casos previstos em lei.

 

A Lei 8080, de 1990, por sua vez dispôs em seu art. 23 sobre tal vedação, ressalvando os casos de: a) doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, b) entidade de cooperação técnica, c) financiamento e empréstimos e e) serviços de saúde mantidos, em finalidade lucrativa, por empresa, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social. Exigiu ainda a lei, a autorização obrigatória do órgão de direção nacional do SUS, submetendo-se a seu controle as atividades que forem desenvolvidas e os instrumentos que forem firmados.

No apagar das luzes do ano de 2014, no dia 16 de dezembro de 2014, a proposta de conversão n. 18, da Medida Provisória n. 656 em lei, emendada pela Câmara dos Deputados acrescentando-se por volta de uns cem artigos – promoveu alteração em um grande universo de leis e alterou o art. 23 da Lei 8080 para permitir a participação direta ou indireta, inclusive de controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos casos que especifica. Esses casos na realidade são praticamente todos aqueles que comportam o conceito de assistência à saúde, onde a iniciativa privada brasileira tem liberdade para atuar, respeitado o disposto no art. 197 da Constituição que submete todas as ações e serviços de saúde, públicos ou privados, à regulamentação, controle e fiscalização do Poder Público.

Nesse sentido, o art. 143 do PL de conversão n. 18 torna a vedação constitucional letra morta por admitir que o capital estrangeiro se instale em todas as áreas compreendidas pela assistência à saúde, incluindo ainda o planejamento familiar.

A alteração proposta na MP n. 656 permite que o capital estrangeiro, que pode ser majoritário, atue nas atividades assistenciais:

a) hospitalares gerais ou especializados, incluindo a filantropia;

b) clinica geral, especializada, policlínica;

c) laboratórios de genética humana;

d) produção e fornecimento de medicamentos e produtos para a saúde;

e) laboratórios de análises clínicas, anatomia patológica e de diagnósticos por imagem.

 

Todas as atividades de assistência à saúde estão previstas no referido artigo do PL, restando a pergunta: o que está vedado? Qual é a exceção à vedação constitucional? A Constituição não permite a participação de empresas e do capital externo na saúde, mas o título do capítulo, bem como a redação do caput do art. 23 do PL de conversão, abre a saúde ao capital estrangeiro ignorando o texto constitucional. A referida redação é de positivação e não de negativa, conforme determina a Constituição ao vedar a participação estrangeira na saúde, salvo nos casos previstos em lei.

Além do mais qual seria a justificativa de urgência para se incluir num PL de conversão de uma MP, que deve manter o mesmo sentido de urgência no tocante às suas alterações? A proposta da Câmara é flagrantemente inconstitucional.

Importante lembrar que a Lei 9656, de 1998, que dispõe sobre planos de saúde, também criou uma exceção à regra geral constitucional de vedação de capital estrangeiro na saúde, ao permitir no § 3º, do art. 1º, essa participação. Agora nem se deram ao trabalho de criar uma exceção, mas acintosamente tentam alterar o texto constitucional por lei, ou melhor, por medida provisória convertida em lei.

Lei 9656:

Art. 1º.
(…)
§ 3º As pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior podem constituir ou participar do capital, ou do aumento do capital, de pessoas jurídicas de direito privado constituídas sob as leis brasileiras para operar planos privados de assistência à saúde.

 

Deve-se ter muita atenção com o referido PL de conversão porque introduz outras questões relevantes, como alterar a lei 8.112, de 1990 (estatuto do servidor público federal) para permitir cessão de servidores públicos para serviço social autônomo, entidade privada que não integra a Administração Pública. Essas entidades poderão contar com a colaboração de servidor público? Não faz o menor sentido essa permissão que fere princípios constitucionais da Administração Pública, tanto que um dos pontos de discussão judicial das organizações sociais, ainda sub judice, é a cessão de servidor público para entidade privada. Mais uma violação, mais uma Adin que poderá levar mais de dez anos para ser julgada…

Também se altera a legislação que diz respeito à vigilância sanitária, à licitação, o que requerer cuidado quanto à sua análise mais geral. Estas breves notas se cingiu à questão da vedação do capital estrangeiro na saúde que o PL entendeu como de abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde, ao arrepio da Constituição.

 

Em 26 de dezembro de 2014

Redação do PL de conversão n. 18, de 2014:

 

CAPÍTULO XVII

Da abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde

“Art. 143. A Lei 8080, de 19 de setembro de 2014, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 23. É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos:

I – doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos;

II – pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar:

a) Hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada;

b) Ações e pesquisas de planejamento familiar;

III – serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e

IV – demais casos previstos em legislação específica.” (NR)

“Art. 53-A. Na qualidade de ações e serviços de saúde, as atividades de apoio à assistência à saúde são aquelas desenvolvidas pelos laboratórios de genética humana, produção e fornecimento de medicamentos e produtos para a saúde, laboratórios de análises clínicas, anatomia patológica e de diagnóstico por imagem e são livres á participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros”.

 

 

lenir_santos2*Lenir Santos é Doutora em saúde pública pela Unicamp, advogada especializada direito sanitário e gestão pública e coordenadora do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.