Ligia Bahia: Atos e fatos

Por Ligia Bahia, para O Globo.

 

Há de se convir que o clima para festas de fim do ano não é de euforia. Diante da exposição das entranhas de grandes “modelos” de negócios vazados pela corrupção, uma imensa perplexidade. Se não faltam, nem ao governo nem às empresas privadas, governança, selo de qualidade, transparência e vigilância dos órgãos internos e externos de auditorias, como evitar que os apetites mal resolvidos das classes empresariais e políticas tenham como estuário a malversação de recursos públicos? Nas últimas décadas, o Brasil substituiu parcela considerável dos quadros burocráticos do Estado e aderiu com entusiasmo aos preceitos do gerencialismo. Manteve, porém, apesar de alguns avanços, imensas desigualdades sociais, entre as quais, as de exposição a riscos e de acesso e utilização de serviços de saúde. Explicações rasas para a corrupção são tentadoras, mas têm prazo de validade limitado. O “sempre foi assim” ou “isso é coisa desse governo” ou ainda as palavras dos profetas que jamais se surpreendem não dão para o gasto. A modernização dos métodos de governo e o rebaixamento da política ao cálculo eleitoral e aos pequenos interesses produzem efeitos contraditórios. Recentemente, dirigentes da Secretaria estadual de Saúde de Tocantins, que recebeu um prêmio de inovação, foram acusados e presos por desvio de recursos. Pode parecer estranho, mas é provável que ambos os processos, melhoria das formas de gerir determinados recursos e corrupção, tenham ocorrido simultaneamente. Ações enunciadas não são necessariamente coerentes com os fatos previstos.

A história da saúde é repleta de gestos e iniciativas sem finalidades de qualquer recompensa que alteraram os rumos do processo saúde-doença e inovações terapêuticas. Algumas delas são bem conhecidas e originaram biografias, estudos científicos e filmes. Em meados do século XX, Vivien Theodore Thomas, um técnico de laboratório negro, habilidoso inventor, impossibilitado de cursar Medicina, foi admitido como assistente do cirurgião Alfred Blalock e tornou-se pioneiro no tratamento de cardiopatias congênitas. A Universidade Johns Hopkins concedeu-lhe em 1976 um doutorado honorário. Foi um dos primeiros médicos a realizar cirurgia de coração aberto nos Estados Unidos. Eunice Rivers, enfermeira do projeto Tuskegee, iniciado nos anos 1930, no Alabama, baseado na negação de tratamento para negros com sífilis, mesmo a partir de 1945, com a disseminação da penicilina, confortou as “cobaias” e contribuiu para tornar públicos os objetivos do estudo. No entanto, a experiência só foi terminada com a divulgação de denúncias do historiador James Jones, autor do livro “Bad blood” (sangue ruim), considerado um marco da bioética, e reportagem de Jean Heller publicada em 1972 no “New York Times”. O governo americano pagou indenizações para mais de seis mil pessoas. Em 1997, Bill Clinton pediu desculpas formais para os cinco sobreviventes do experimento.

As células HeLa, iniciais de Henrietta Lacks, doadas por uma mulher com câncer que morreu com 31 anos em 1951, possibilitaram novas investigações da microbiologia do corpo humano. As células de Henrietta, que permanecem vivas, foram usadas para a produção da vacina contra a poliomielite e inicialmente distribuídas livremente para diversos laboratórios e cultivadas para estudos sobre neoplasias e síntese proteica. Posteriormente, as células passaram a ser comercializadas. O contraste entre a façanha científica e a falta de informação para a família Lacks e os lucros das gigantescas corporações de medicamentos e pesquisa genética estimulou a adoção de normas sobre a doação de material biológico.

O trabalho do fotógrafo Luiz Alfredo Ferreira, em 1961, para a revista “O Cruzeiro” e o filme de Helvécio Ratton “Em nome da razão”, divulgado em 1979, sobre o hospício em Barbacena, foram essenciais para desvelar o denominado holocausto brasileiro. Desde então, psiquiatras, psicólogos brasileiros e cientistas internacionais seguiram revelando as condições sub-humanas das internações psiquiátricas, o macabro comércio de cadáveres entre os hospícios para as aulas de Anatomia de faculdades de Medicina e o uso dos manicômios para trancafiar presos políticos. A legislação sobre a reforma psiquiátrica promulgada em 2001 não encerrou as polêmicas sobre a saúde mental, mas certamente representou o reconhecimento da desumanidade dos depósitos institucionalizados de pessoas. Thomas Maack, médico e fisiologista formado pela USP, um dos pesquisadores presos nos anos 1960, desenvolveu uma brilhante carreira e atualmente dedica-se à educação médica. Liderou a reforma do currículo médico em Cornell, uma das melhores universidades nos EUA, e tem posições claras sobre os problemas das escolas médicas brasileiras. Afirmou, em 2014, que muitas das nossas faculdades médicas, fora as conhecidas exceções, não seriam reconhecidas nos países desenvolvidos e que o ensino de Medicina de qualidade não dá lucro.

Atos movidos pelo interesse comum desencadeiam solidariedade e fatos. É incorreto parear as ações na sociedade e as deliberações de governos. Contudo o “decisionismo” e as crenças de que modelos propostos se tornam automaticamente realidade reduzem o papel central da esfera pública de definir temas relevantes e permitir o encontro de vontades contrastantes. A propósito: o governo federal será contra, a favor, ou antes pelo contrário, do aumento dos investimentos estrangeiros em estabelecimentos de saúde? Adotará alguma orientação diante dos evidentes fracassos financeiros e assistenciais de empresas de planos de saúde? Tudo isso está acontecendo agora, a olho nu. Mais saúde e a elevação das taxas de retorno para investidores são antagonismos políticos e não picuinhas pessoais ou contábeis. Não existe uma poção mágica para curar quem está borocoxô ou arrebatado por certezas, o que vem pela frente é um novo ano, no qual os adjetivos e a ilusão de tomar procedimentos administrativos por fatos concretos podem ser deslocados em favor do debate e da participação.

 

*Ligia Bahia é professora da UFRJ. Entre em contato: ligiabahia55@gmail.com.

 

Fonte: O Globo