Livia Angeli sobre as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil
Livia Angeli Silva, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e militante do CEBES
Um projeto de reconstrução do Brasil deve ter como um de seus eixos centrais o fortalecimento um dos maiores patrimônios do povo brasileiro: o Sistema Único de Saúde
Com o golpe de 2016 e a consequente ruptura no projeto político voltado à ampliação de direitos sociais, é inevitável o resgate de estratégias políticas que vinham sendo adotadas e que foram abruptamente interrompidas ou que tiveram seu curso desviado para atender interesses do capital.
Entretanto, um projeto em que se pretende reconstruir o Brasil, requer um olhar crítico que reflita o que aprendemos com o golpe sofrido e recoloque na agenda elementos negligenciados, inclusive, pelos governos do campo democrático e popular. Nesse sentido, é fundamental considerar uma reconstrução que não diga respeito apenas ao estrago feito pelos governos Temer e Bolsonaro, mas uma reconstrução que leve em conta lacunas históricas não devidamente enfrentadas e que deram lugar ao enraizamento do discurso da extrema direita nos segmentos populares ao utilizar-se dos problemas reais e concretos vivenciados pelas pessoas cotidianamente e propor soluções simplistas e de base ultraconservadora, ganhando espaço no imaginário social.
A saúde se constitui um ponto extremamente sensível às investidas do projeto de extrema direita, justamente por explorar as situações reais de falta de acesso e baixa resolutividade de muitos serviços, ou até mesmo questões relativas ao acolhimento, conforto das instalações ou à cultura da utilização dos serviços especializados, alimentada pelo setor privado. E mesmo que as soluções propostas não tenham capacidade de superar as dificuldades, nem tenham sustentabilidade financeira e de força de trabalho, elas são atrativas para o grande público, por ir ao encontro do imaginário construído da utilização de serviços de saúde na lógica do consumo.
Por isso, um projeto de reconstrução do Brasil, no que tange a pauta da saúde, precisa apresentar elementos estruturantes da política pública de saúde com viabilidade técnica-organizacional-financeira, mas também conter uma linguagem clara da tradução disso na melhoria dos serviços para que dialogue com os interesses da sociedade, principalmente, daqueles que só contam com o SUS para todas as ações de saúde.
Mesmo entendendo que o que temos até então são diretrizes para um programa a ser detalhado, é preocupante ver a superficialidade com a qual a pauta da saúde foi tratada: foco nos problemas causados pelo negacionismo do governo atual e a intensificação da crise sanitária, assim como uma perspectiva de retomada de um cenário dos governos petistas, com resgates de programas específicos, como se estivéssemos, à época, no cenário ideal, ou mesmo, como se esses programas fossem o eixo central do projeto da saúde.
A compreensão ampliada da saúde, e todo o acúmulo de construção e implementação de políticas, sobretudo pelo campo democrático e popular, tem um legado e uma experiência que precisam ser valorizados. Urge um olhar que consiga reconhecer os avanços que tivemos em toda amplitude do SUS, que é imensamente maior que “Mais Médicos” e “Farmácia Popular”. Mas, ao mesmo tempo, faz-se necessário identificar o que ainda é fator limitante para propor estratégias de enfrentamento concreto dos problemas em um país continental, federalista, que tenha autonomia dos entes federados, mas com uma direção única do sistema.
Não é possível pensar em um projeto para o Brasil que não considere propostas concretas de financiamento, fontes de receitas e formas de repasses, que rompa com o subfinanciamento público crônico, que inclusive não foi devidamente enfrentado por nenhum governo. Entretanto, mesmo o financiamento sendo fundamental, outros elementos são imprescindíveis para a reconstrução do SUS como parte da reconstrução do Brasil, que perpassam pela lógica institucional, a reestruturação de políticas fundamentais, requalificação e aperfeiçoamento da estrutura e funcionalidade da rede de atenção e política de formação de trabalhadores da saúde em todos os níveis.
A população precisa ver no projeto de governo alternativas concretas para resolução dos problemas que ela enfrenta, para que compreenda que o SUS é viável e que merece ser defendido. Temos que romper com a máxima de que “o SUS é bonito e perfeito no papel”. E isso implica em propostas não para um cenário ideal, mas considerando a concretude das adversidades já conhecidas.
A visibilidade e reconhecimento que o SUS obteve no enfrentamento à pandemia precisa ser aproveitado tanto para o diálogo com a sociedade, quanto para compreender melhor todas as contradições que envolvem a implementação das políticas de saúde.
Assim, o projeto de reconstrução do Brasil, necessariamente, perpassa pela elaboração de estratégias de melhoria das condições de vida e saúde da população com operacionalização do modelo de atenção que parta de um conceito ampliado de saúde, assim como pelo aprimoramento de políticas estratégicas, e, principalmente, pelo fortalecimento do SUS público e com soberania nacional para sua sustentabilidade.