Lucia Souto: ‘Precisamos recuperar o espírito de 88 para enfrentarmos o desmonte do Estado’
Publicado originalmente pelo CEE-Fiocruz
A posse da nova diretoria do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) se dá num momento de grandes desafios para toda a sociedade brasileira. O Cebes, uma entidade com mais de 40 anos de luta, teve papel histórico na construção do direito universal à saúde no país. Seu documento Saúde é Democracia constituiu-se numa referência no processo de conquistas dos direitos sociais no Brasil.
A sociedade brasileira vive um momento crucial frente a dois macrocontextos: o da crise sistêmica do capitalismo global com a crescente tensão entre capitalismo e democracia; e o macrocontexto do golpe de 2016 no Brasil. Um verdadeiro processo destituinte, de liquidação do pacto democrático cidadão da Constituição de 1988 e de afronta ao papel estratégico, soberano e altivo do Brasil na geopolítica internacional. A disputa realizada no Brasil é uma disputa civilizatória de repercussões globais por seu papel estratégico na geopolítica global. Os movimentos de criação do Mercosul, da Unasul (União de Nações Sul-americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhose) e do Brics constituíram a expressão de um mundo mais diverso e plural.
A disputa realizada no Brasil é uma disputa civilizatória de repercussões globais por seu papel estratégico na geopolítica global
O ataque do capitalismo financeiro associado a uma elite oligárquica, escravocrata, tem dimensões globais e se manifesta em três dimensões estratégicas: a afronta à soberania nacional, aos direitos sociais e à democracia.
O enfrentamento das desigualdades ancestrais, com a retirada de 40 milhões de brasileiros da miséria, o ingresso de mais de 7 milhões de estudantes no ensino superior, dos quais 35% foram os primeiros de suas famílias a ingressar na universidade, tocaram em um ponto chave da sociedade brasileira: a persistência de uma cultura escravocrata que despreza o povo brasileiro. Um povo exuberante, inteligente, criativo, que sustenta o país é tratado com desprezo, preconceito e ódio por uma elite escravocrata que cultiva a desigualdade e pretende eliminar este povo.
Em momentos como este, e inspirados em Hannah Arendt, devemos buscar a exemplaridade. O movimento de luta, construção do direito universal à saúde não foi trivial, o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) é certamente uma experiência histórica exemplar de construção democrática/participativa, de direitos sociais soberania e criação de um campo de conhecimento, a Saúde Coletiva afirmando a determinação social do processo saúde/doença.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, com mais de 5 mil delegados, significou uma verdadeira constituinte popular de saúde, com mais de 140 grupos de trabalho e uma plenária final que durou mais de 24 horas, com um plenário incansável, um verdadeiro espírito de felicidade pública.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, com mais de 5 mil delegados, significou uma verdadeira constituinte popular de saúde
Precisamos retomar o Espírito de 88. É preciso que retomemos o espírito de construção coletiva que nos levou à Constituinte de 1986, em que travamos importantes disputas para que a Constituição de 1988 pudesse contemplar o desejo de cidadania que movia a sociedade naqueles dias.
O Cebes, com seus 40 anos de história e participação decisiva na construção do movimento sanitário brasileiro, tem muito a contribuir nessa disputa de projeto para o Brasil. É responsabilidade do Cebes e de outras entidades da sociedade civil assegurar os 30 anos da Constituição Federal e fazer com que ela seja revigorada e não liquidada.
Para resistirmos e avançarmos é preciso que, inspirados pelo espírito de 88, intensifiquemos nossa organização e nos aliemos às frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo e a outros movimentos de defesa da cidadania e dos direitos. Hoje, temos no Cebes muitos núcleos atuando ativamente em defesa do SUS constitucional, por uma saúde de qualidade, pública e universal. Esses grupos devem ser estimulados para que possamos cumprir nosso papel, na defesa do Estado e dos direitos da população.
A sociedade brasileira está novamente, como em 1988, diante de uma encruzilhada, instada a escolher um projeto para o país
A sociedade brasileira está novamente, como em 1988, diante de uma encruzilhada, instada a escolher um projeto para o país. E, para enfrentarmos esse momento de ponto de bifurcação, em que está em jogo que país queremos, devemos ir ao encontro do povo brasileiro que, diante de sua responsabilidade histórica saberá, como em outros momentos, afirmar sua presença ativa em defesa de um país soberano com direitos sociais de cidadania e democracia.
O Cebes se compromete com a construção de projeto que enfrente o pacto antipopular dos menos de 1% de endinheirados e das ancestrais desigualdades, em defesa intransigente direitos sociais de cidadania e o direito universal à saúde. Estaremos presentes nas lutas em defesa da previdência social e do direito à aposentadoria, nas lutas das mulheres no 8 de março, no processo do Fórum Social Mundial e no processo liderado pelo Conselho Nacional de Saúde de realização em 2018/2019 da 8+8, a 16ª Conferência Nacional de Saúde, atualizando o Espírito de 88.
As saídas individuais se tornam inviáveis fortalecendo a base social de um sistema público e universal de saúde
A população brasileira já sente na carne as consequências do desmonte SUS. Além disso, muitos estudos mostram que está aumentando o deslocamento dos planos de saúde na direção do SUS em função da precarização do trabalho, do desemprego. As saídas individuais se tornam inviáveis fortalecendo a base social de um sistema público e universal de saúde.
Sabemos que o SUS é um patrimônio do povo brasileiro e deve ser tratado como tal. Um sistema que tem uma capilaridade na sociedade brasileira que faz com que todos, pobres ou ricos, se valham dele, mesmo sem perceber. Um exemplo é a grave situação febre amarela. A vacina é produzida pela Fiocruz, é o SUS que está dando sustentação à vacinação em massa contra a febre amarela.
O Cebes será intransigente na defesa do SUS constitucional, da democracia e da soberania.
SAÚDE É DEMOCRACIA!
* Lucia Souto é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Acesse o livro Saúde é democracia: a luta do Cebes, de Sonia Fleury.