Lúcia Souto traça ao OAPS o panorama atual da luta da Saúde Coletiva em 2022
A presidenta do Cebes Lúcia Souto é a entrevistada deste mês de maio do Observatório de Análise Política em Saúde. A médica sanitarista fala sobre o cenário atual de luta contra ações de privatizações do Sistema Único de Saúde, a pandemia de Covid-19, a Frente pela Vida, o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19 e muito mais. Leia um trecho a seguir e, depois, acesse a publicação em PDF com a íntegra da conversa.
“Nós estamos disputando qual Brasil queremos, essa é a realidade”, reitera a presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Lucia Souto, na entrevista do mês de maio do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). A médica sanitarista, que tem mestrado em Saúde Coletiva e doutorado em Saúde Pública, analisa o cenário brasileiro no âmbito da saúde e do debate sobre democracia, soberania e direitos sociais. Para Lucia, o ano de 2022 é marcado pelos esforços para construção de uma base social e política no país capaz de reconstruir um Brasil destruído. Ao tempo em que aponta ataques bem sucedidos aos direitos da população brasileira, a pesquisadora do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) afirma que a pandemia evidenciou o fracasso do projeto ultra neoliberal. E destaca a mobilização em resistência a esse projeto, que inclui entidades históricas do movimento da Reforma Sanitária Brasileira. “Eu acho que está todo mundo percebendo em que buraco nós chegamos, estamos no meio do precipício, na beira do abismo […] esse ano de 2022 é o ano das nossas vidas, o ano da gente brasileira saber que país a gente quer”, afirma. Boa leitura!
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): No início de 2019, ao falar sobre a 16ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em agosto daquele ano, você afirmou que aquele era um momento de grandes disputas civilizatórias. Quais foram os impactos da pandemia de Covid-19 em um cenário que você já apontava como crítico?
Lucia Souto: Desde 2019 já estávamos em um cenário bastante acirrado de disputas de projetos na sociedade brasileira e até globalmente. Estávamos assistindo no Brasil ao golpe de 2016, um golpe com objetivo muito claro de destruição de direitos, e entre as expressões desse projeto estava a Emenda Constitucional 95, que eu sempre lembro que o único país no mundo que tem uma emenda com esse desenho é o Brasil. Isso é uma verdadeira extravagância e, além disso tudo, o conjunto de reformas de destruição de direitos, como a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a questão de todas as quebras de regulações de qualquer política, como a política ambiental.
Todas as políticas foram objeto dessa destruição e uma das mais expressivas (como nós, médicos, diríamos, “patognomônica”) desse projeto, aquela que é realmente a cara desse projeto, foi a destruição do Ministério do Trabalho. Ele acabou, foi colocado no Ministério da Economia e todo um conjunto de consequências que foram muito contundentes, como a volta do Brasil ao mapa da fome, 19 milhões de desempregados, quase 120 milhões em insegurança alimentar, 40 milhões de pessoas em trabalho precário, quer dizer, uma naturalização disso e uma concentração de renda. Já sabendo que o Brasil era um dos países mais desiguais do mundo, essa desigualdade foi exponencial nesse período, uma concentração de renda absurda e todas as questões que a gente mal começava a enfrentar nos governos populares foram todas paralisadas. Um retrocesso gigantesco.
Isso aí é um panorama geral e o rebatimento disso na área da saúde foi gigantesco porque, de cara, um sistema universal de saúde que foi a duras penas construído na transição da ditadura militar para a democracia, na Constituição de 88 – saúde direito de todos, dever do Estado, o artigo 196 e a saúde que depende de políticas sociais e econômicas. Isso já trabalhando com a ideia da determinação social do processo saúde-doença, que não é apenas a dimensão do cuidado, embora ele seja fundamental, mas o cuidado no sensu lato, ou seja, a questão da moradia, da cultura, do lazer, do emprego – porque trabalho todo mundo trabalha, mas a questão de uma remuneração digna que possa proporcionar a todo mundo o bem viver, que é isso que nós sempre trabalhamos.
É nessa questão que dizíamos, e eu digo isso mesmo, que já estamos nessa disputa que é muito grave e civilizatória. Estamos nessa jornada ainda e espero que esse ano de 2022 marque essa construção de uma base social e política no Brasil capaz de realizar a reconstrução do país destruído. Ou seja, nós estamos disputando qual Brasil queremos, essa é a realidade.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Em entrevista no ano passado, você ressaltou que em momentos desafiadores como o da pandemia é fundamental revisitar a construção participativa do direito universal à saúde, proclamado na Constituição Federal de 1988. O projeto de sociedade vinculado à Constituição Cidadã fracassou? Quais os caminhos para retomá-lo?
Lucia Souto: Seria demais dizer que esse projeto fracassou. Acho até que do ponto de vista de políticas públicas construídas no Brasil, o SUS e o direito universal à saúde são, de fato, uma política exemplar. Logo após a Constituição ter sido aprovada, o próprio então presidente, Sarney, dizia que a Constituição aprovada e o capítulo da ordem social não cabiam no orçamento, que ele via dificuldade em como financiaríamos esses direitos. Quer dizer, já esse “blá blá blá” neoliberal que sempre os direitos do povo não podem ser financiados, o que pode é dinheiro no bolso de três bilionários. Logo depois o Collor é eleito naquele momento que houve também uma grande manipulação da mídia, que editou aquele debate final da campanha eleitoral. Ou seja, a disputa de projetos é uma sequência.
Quando olhamos para a história da Constituição de 88, na verdade, ela sempre foi sabotada, ou seja, nunca conseguimos consolidar. Após 32 anos da Constituição aprovada, percebemos as resistências ao que está no texto constitucional. E, no caso da saúde, são gigantescas, então eu não acho que seja um fracasso porque a gente conseguiu, apesar do governo Fernando Henrique e de todas essas pessoas, apesar do financiamento crônico porque não há política viável que não tenha financiamento estável. Isso nunca aconteceu do ponto de vista da política de saúde como direito universal.
Na pandemia houve uma enorme mobilização das entidades históricas do movimento da Reforma Sanitária brasileira, por toda a história, todo o trabalho, o acúmulo de décadas. Em meia hora, metaforicamente falando, conseguimos rapidamente nos articular e formar no início de 2020 a Frente pela Vida. Nós fizemos iniciativas que foram fundamentais, desde o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19, que apresentamos em meados de 2020, tem toda uma linha do tempo que vocês podem ter acesso na página da Frente pela Vida, por exemplo, o documento da primeira marcha virtual a Brasília, que tinha cinco pontos.
O primeiro ponto era a pandemia como uma crise política, econômica e social de grandes proporções. O segundo colocava a importância das medidas baseadas na ciência porque o tempo inteiro o governo federal contestou isso e trabalhou a política com objetivo realmente de expor ao risco de adoecer e morrer – ele apostou no kit Covid, foi toda uma controvérsia o tempo inteiro. Então o segundo ponto é esse, trabalhar baseado na ciência porque o ministério [da Saúde] foi ocupado militarmente. O Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] desempenhou um papel importantíssimo, com o presidente Carlos Lula, secretário estadual de Saúde do Maranhão. Muitas pessoas se mobilizaram em torno dessa nossa frente, a gente conseguiu de alguma maneira obrigar a [instauração da] CPI; depois, já em 2021, todo um conjunto de ações que foram feitas e obrigaram o governo a fornecer a vacina, por exemplo, e a população brasileira vê que a gente não é um fracasso.
Temos até um filme agora pelo Conselho Nacional de Saúde chamado “Se não fosse o SUS” e é se não fosse o SUS mesmo porque mesmo com toda a situação crítica que vivemos e que hoje a gente mensura (tem pesquisa da Fiocruz que mostra todas as leis, projetos e iniciativas do governo que produziram as 665 mil mortes), se não fosse o trabalho do SUS seria 1 milhão [de mortes]. Essa situação sanitária catastrófica que a gente viveu só foi mitigada porque a gente poderia ter nadado de braçada, se estivéssemos desamarrados e com toda potência, mas conseguimos vitórias importantes.
Uma delas, bem enfatizada, é a questão da adesão maciça brasileira à vacinação quando o governo pregava que não iria vacinar, que virava jacaré e toda aquela pregação anticiência e de fake news. Olha que resistência fabulosa e com que rapidez a gente conseguiu vacinar – como sempre conseguimos historicamente e essa história pesou nesse momento para a vacinação, apesar de tudo. E as instituições públicas como a Fiocruz e o Instituto Butantã, antes do governo fazer qualquer liberação pressionada, já tinham feito seus acordos para a transferência de tecnologia – a vacina da AstraZeneca já está com insumo 100% nacional.
Poderíamos argumentar também como a pandemia revelou a importância de ter a sua soberania e segurança sanitária para não precisarmos ficar mendigando aparelhos respiradores e até mesmo EPIs [Equipamentos de Proteção Individual]. Isso de um lado, e o Butantã também voltando à sua condição centenária, inicialmente com insumos transferidos da China para produção da vacina, agora já está com a vacina totalmente nacional, que é a ButanVac, não sei o porquê de não está sendo ainda comercializada, deve ser por conta dessa guerra do Ministério da Saúde contra tudo que signifique o progresso do bem estar e da qualidade de vida da população, mesmo com referências. A resiliência do sistema de saúde foi posta à prova, eu diria, e se saiu bem dentro da situação trágica que a gente viveu.