Mais Médicos pode sofrer esgotamento, diz professor
Valor Econômico
O governo está usando incentivos financeiros para levar profissionais de medicina para o interior do Brasil. Mesmo assim, medidas complementares ao Mais Médicos são necessárias para que o programa dê certo. Mário César Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), diz que a ação do programa é limitada e pode padecer de um esgotamento.
O especialista – que critica a ausência de avaliação dos médicos que irão atuar no programa – explica que uma das principais razões para a migração de médicos, principalmente entre países, é a oferta da possibilidade de aperfeiçoamento. “Não é o caso do Mais Médicos”, avalia Scheffer, para quem a atuação desses profissionais em locais com carência de infraestrutura pode ser importante, mas também tem efetividade limitada. Segundo Scheffer, o Brasil queimou etapas ao não optar por um plano de carreira federal e houve pouca discussão para a implantação do Mais Médicos. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: Mais de 4 mil municípios solicitaram 16.625 profissionais nas duas etapas de inscrições do Mais Médicos. Pouco mais de mil brasileiros se inscreveram. Como explicar esse baixo interesse?
Mário César Scheffer: Primeiro é preciso olhar para a falta localizada de médicos nos pequenos municípios, áreas historicamente de difícil provimento. Esse é o principal perfil dessa carência no país e no mundo. Em segundo lugar, políticas desse tipo tendem a ter limitações na resolução definitiva desse problema. Apenas as medidas, emergenciais, do Mais Médicos, não dão conta. É preciso uma combinação de medidas. Não tenho dúvida de que haverá um esgotamento. O primeiro sinal disso é que os médicos brasileiros, mesmo com incentivos, não abraçaram completamente o programa e não irão, em massa, para os locais carentes, como nunca foram. A tentativa com médicos estrangeiros tende a ser limitada também.
Valor: Por quê?
Scheffer: Não existe no mercado internacional, hoje, os 16 mil médicos que o governo quer que venham, tirando os cubanos, uma questão sui generis. Os demais médicos estrangeiros virão aos poucos, como sempre vieram. A migração de médicos entre países tem a ver com remuneração, condições de trabalho e, principalmente, aspectos de capacitação e aperfeiçoamento. Países que conseguem agregar muitos estrangeiros oferecem oportunidades de capacitação. Não é o caso do Mais Médicos.
Valor: Médico tem um trabalho efetivo em locais com infraestrutura ruim e falta de equipamentos?
Scheffer: É possível exercer a atenção primária sem grandes tecnologias e até em condições não totalmente adequadas de trabalho. Mas é importante levar em conta que o médico terá sempre uma atuação limitada, precária, e em diversas situações certamente o paciente não terá à disposição os recursos diagnósticos e terapêuticos para ser curado e, às vezes, até para ter a vida salva. Mas na situação de completa escassez de assistência que temos no Brasil, a presença de um profissional é muito melhor que uma ausência total.
Valor: Mesmo limitada, essa presença pode criar alguma mobilização pró-saúde?
Scheffer: Sim, pode ser uma alavanca de ampliação da assistência dos direitos. Mas o médico sozinho não irá mudar os indicadores de saúde daquela população, é uma atuação limitada.
Valor: De um mês para cá, os problemas do SUS foram esquecidos e ele ficou “medicocêntrico” demais?
Scheffer: O Mais Médicos caiu numa discussão muito rasa. Trouxe à tona o tema antigo de que a assistência médica é importante e inúmeros locais do país não contam com sequer um médico, mas o sistema de saúde não é feito só de médicos. O Mais Médicos dá o protagonismo a uma única profissão, uma abordagem muito limitada.
Valor: Qual a importância do salário e da carreira nesse debate?
Scheffer: Com o Mais Médicos, o Brasil queimou etapas. Está apresentando uma solução emergencial, paliativa, com remuneração via bolsas, trabalho temporário. O país não quis experimentar a solução do plano de carreira. Seria absolutamente possível existir um plano de carreira federal para os mesmos municípios do Mais Médicos. A carreira não só institui um salário compatível com uma dedicação exclusiva, mas também cria possibilidade de retroalimentar a carreira. Ou seja, os profissionais vão ascender e vão dar lugar a novos. É uma alternativa muito interessante. Em 2010, no fim do governo Lula, esse plano foi desenhado, usando a mesma lista de cidades elegíveis agora para o Mais Médicos.
Valor: Agora que o programa está em andamento, como deve ser feita sua avaliação?
Scheffer: Isso é importantíssimo, tem que ser criada uma ferramenta, inclusive para os médicos cubanos. Eles têm uma formação que é importante para a ordenação do sistema de saúde de Cuba a partir da atenção primária, mas não sabemos qual é o real desempenho de médicos com esse perfil no nosso SUS. Acredito que deve ser feita uma avaliação de impacto qualitativa simultânea e, no médio e longo prazos, uma avaliação em cima de indicadores de saúde da população beneficiada.
Valor: O Mais Médicos já tem logotipo, propaganda na televisão, site na internet, mas sua implementação foi transparente?
Scheffer: A linguagem do programa não é a da saúde pública, é a do marketing, inclusive com viés eleitoral. Não houve discussão ampla com entidades que formam e registram médicos. Não foi sequer discutido no Conselho Nacional de Saúde, uma instância de controle social que conta com a participação de toda a sociedade. O Mais Médicos começou com pouca transparência, mas pela visibilidade que está tendo hoje acho que é possível acompanhar seu desempenho mais adequadamente.