Manifesto em Defesa de um Debate Cientifamente Fundamentado sobre Local de Parto
O Manifesto é fruto da necessidade latente de se debater a questão do parto domiciliar no Brasil, que com a recente morte da ativista Caroline Lovell depois de um parto domiciliar na Austrália, despertou intensa comoção em todo o mundo e em alguns médicos e representantes de sociedades e conselhos no Brasil que, aproveitando o caso, se colocaram contra a atenção ao parto domiciliar. O Texto nos foi enviado pela Professora Melania de Amorim, pós-doutorada em Saúde Reprodutiva na OMS.
MANIFESTO EM DEFESA DE UM DEBATE CIENTIFICAMENTE FUNDAMENTADO SOBRE LOCAL DE PARTO
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”
(Carlos Drummond de Andrade)
A recente morte da ativista Caroline Lovell depois de um parto domiciliar na Austrália, que despertou intensa comoção em todo o mundo, com manchetes sensacionalistas em diversos jornais alertando contra “os riscos” de um parto domiciliar; O posicionamento de alguns médicos e representantes de sociedades e conselhos no Brasil que, aproveitando um caso isolado, se colocam contra a atenção ao parto domiciliar;
As tragédias silenciosas, como o elevado número de mortes maternas que ocorrem anualmente no Brasil em pleno século XXI, e que são relegadas ao esquecimento, embora proporção superior a 95% dos partos ocorra em ambiente hospitalar, ressaltando que está comprovado que mais de 90% dessas mortes são classificadas como evitáveis;
O fato de que muitos desses óbitos decorrem de assistência inadequada à gestação e suas intercorrências e, principalmente, da inadequada atenção ao parto, sendo que importante proporção está associada com cesáreas eletivas;
O fato de que todos os grandes estudos atuais apontam para segurança semelhante entre partos atendidos no domicílio ou centros de parto normal, quando comparados com os partos atendidos no hospital, desde que os primeiros sejam planejados e atendidos por profissionais habilitados, e que os partos em casa ou centro de parto normal demonstram níveis superiores de satisfação da paciente, integridade perineal, índices mais baixos de cesariana e taxas de amamentação por período mais prolongado;
Que a Medicina Baseada em Evidências consiste na integração harmoniosa da experiência clínica individual com as melhores evidências científicas disponíveis e com as características e expectativas dos pacientes, assim como o respeito à autonomia dos pacientes é um dos princípios básicos de Bioética;
Que a discussão sobre o local de parto deve se pautar, essencialmente, em dois níveis: respeito às evidências científicas e respeito à autonomia e ao protagonismo feminino, uma vez que a escolha do local de parto é um direito reprodutivo básico; Que tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) como a Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (FIGO) respeitam o direito de escolha do local de parto pelas mulheres e reconhecem que, quando assistidos por profissionais habilitados, há benefícios consideráveis para as mulheres que querem e podem ter partos domiciliares ou em centros de parto normal;
Que a OMS reconhece como profissionais habilitados para prestar assistência ao parto tanto médicos como enfermeiras-obstetras e obstetrizes (parteiras formadas); Que a FIGO recomenda que “uma mulher deve dar à luz num local onde se sinta segura, e no nível mais periférico onde a assistência adequada for viável e segura”;
Que as revisões da Colaboração Cochrane sobre local de parto identificaram que em centros de parto normal, tanto intra como extra-hospitalares, ocorrem taxas mais baixas de procedimentos invasivos e restrições, taxas mais baixas de cesariana, de necessidade de analgesia para o parto, de utilização de ocitócicos para estimulação do parto, com maior mobilidade das mulheres, menores taxas de anormalidade nos batimentos cardíacos fetais e maior satisfação com a assistência;
Que o sistema de saúde da Inglaterra, que se pauta por basear suas políticas em evidências científicas, adotou como política pública a recomendação de que as mulheres busquem o parto domiciliar, e para elaborar essa diretriz contou com o apoio do Royal College of Obstetricians and Gynecologists (RCOG) e do Royal College of Midwives (RCM). De acordo com a diretriz do RCM e do RCOG, “não há motivos para que o parto domiciliar não seja oferecido a mulheres de baixo risco, uma vez que pode conferir consideráveis benefícios para essas gestantes e suas famílias”;
Que o American College of Nurse Midwives e a American Public Health Association apoiam o parto domiciliar e em centro de parto normal para gestações não complicadas. sendo que o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), conquanto explicite que considera hospitais e centros de parto normal mais seguros, reconhece o direito das mulheres de escolher o local de parto, tendo publicado em fevereiro de 2011: “Embora o Comitê de Prática Obstétrica acredite que os hospitais sejam os locais mais seguros para o nascimento, ele respeita o direito de uma mulher de tomar uma decisão medicamente informada sob o parto. Mulheres questionando sobre o parto domiciliar planejado deveriam ser informadas sobre os seus riscos e benefícios baseados nas recentes evidências. (…) É importante que as mulheres sejam informadas que a adequada seleção de candidatas para o parto domiciliar; a disponibilidade de enfermeiras-obstetras ou obstetrizes certificadas, ou médicos atuando dentro de um sistema de saúde integrado e regulado; o pronto acesso à consulta; e a garantia de transporte seguro e rápido para os hospitais mais próximos são críticos para reduzir as taxas de mortalidade perinatal e obter desfechos favoráveis do parto domiciliar.”
Que existe uma parcela crescente de mulheres insatisfeitas com o atual modelo de assistência obstétrica, excessivamente tecnocrático e caracterizado, por um lado, por taxas de cesáreas inaceitavelmente elevadas no setor privado (mais de 80%) e, de outro, pelos partos traumáticos e com excesso de intervenções tanto no sistema público como no privado;
Que o parto domiciliar planejado não somente “continua acontecendo” no Brasil, como vem crescendo o número de mulheres que optam por essa alternativa, apesar de ainda não haver estatísticas confiáveis sobre seu número exato, uma vez que os sistemas de informação não permitem distinguir partos domiciliares planejados de não planejados e ocorridos sem assistência;
Finalmente, que o debate em torno do parto domiciliar, não apenas no Brasil mas em todo o mundo, tem se tornado extremamente polarizado e politizado e que não é aceitável que o ambiente hospitalar seja o único a ser oferecido para todas as mulheres que desejam ter seus filhos com segurança, uma vez que os estudos científicos atuais apontam para a segurança do parto domiciliar e em centros de parto normal,
Vimos propor:
Que seja aberto um debate cientificamente fundamentado sobre local de parto, com a participação de governo, organismos internacionais e sociedade civil – movimentos de mulheres, conselhos profissionais, associações corporativas, movimentos populares e outros.
Sugerimos, desta forma, que os conselhos profissionais e todas as entidades envolvidas, em parceria com o Ministério da Saúde, estabeleçam uma agenda conjunta de debate sobre regulamentação da assistência extra-hospitalar ao nascimento, com a elaboração de protocolos baseados nas mais atualizadas evidências científicas, com o objetivo de incrementar a segurança e monitorar os desfechos maternos e perinatais, oferecendo a mais ampla gama de alternativas para as gestantes e reforçando a ideia do protagonismo feminino no parto.