Mário Scheffer alega crise sem precedentes na resposta à epidemia de HIV/Aids
por Conceição Lemes [Viomundo] – 28/7/12
Terminou nesta sexta-feira, em Washington, Estados Unidos, a 19ª Conferência Internacional sobre Aids. O Programa Nacional de DST/Aids, que até então era festejado e apontado como modelo para o mundo, sofreu críticas de especialistas durante toda a semana.
“A história de sucesso do programa brasileiro de aids entrou em declínio por fatores como a saída de recursos internacionais e o enfraquecimento da relação entre o governo e a sociedade civil”, avalia Eduardo Gomez, pesquisador da Universidade Rutgers de Camden, em Nova Jersey, EUA. “Historicamente, o programa brasileiro de aids tinha uma conexão forte com as ONGs, mas agora elas estão sem recursos e sem motivação. O governo precisa delas para conscientizar as populações difíceis de atingir.”
“O aumento da pressão de grupos religiosos e a redução das campanhas de prevenção junto às populações de maior risco são a maior ameaça ao programa brasileiro anti-aids”, pondera Massimo Ghidinelli, coordenador de Aids/HIV da Organização Panamericana da Saúde (OPAS). “Parece que, nos últimos anos, os grupos religiosos ficaram mais fortes e há uma menor intensidade na maneira pela qual o programa lida com questões de homofobia e sexualidade.”
Ontem, quinta-feira 26, ativistas brasileiros presentes à 19ª Conferência Internacional de Aids, em Washington, protestaram em frente ao estande do Ministério da Saúde contra o que definem como “retrocesso na resposta contra a epidemia”. O objetivo, segundo eles, foi mostrar ao mundo que o País “não é mais o mesmo” e “vive do sucesso do passado” no enfrentamento da doença.
“Até agora, as críticas eram principalmente de ONGs e ativistas brasileiros. Agora, são de especialistas estrangeiros renomados”, observa Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda-SP. “O programa brasileiro de aids parou no tempo e não é mais motivo de orgulho nacional. Tivemos uma sucessão de perdas acumuladas. Vivemos uma crise sem precedentes na resposta à epidemia de HIV/aids.”
Ativista há mais de 20 anos e também professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Mário acompanha a epidemia de HIV/Aids desde o seu início nos anos 80. Além do olhar afiado e da expertise em saúde pública, ele conhece bem toda a trajetória do Programa Nacional de DST/Aids. Daí esta nossa entrevista:
Viomundo – Começou no domingo (22) e terminou hoje (27) em Washington a 19ª Conferência Internacional sobre Aids. No decorrer da semana, foram feitas várias críticas ao momento atual do programa brasileiro de aids. Você concorda com elas?
Mário Scheffer – Com certeza. Até agora, as críticas eram principalmente de ONGs brasileiras. Agora, são de especialistas estrangeiros renomados. Elas são a prova maior de que o programa brasileiro não é mais a principal referência internacional, perdemos a liderança e o ineditismo, não ousamos mais nas respostas excepcionais que marcaram nossa história de combate à aids.
Viomundo – As ONGs de aids sempre tiveram boa interlocução com o Ministério da Saúde. O que aconteceu?
Mário Scheffer — As ONGs e os ativistas pioneiros que são obviamente mais críticos não são mais ouvidos. O governo atualmente elege os interlocutores que lhes são mais convenientes e deslegitima muitos daqueles que deram contribuições históricas.
Sinal de que as coisas não vão nada bem por aqui é que tanto a crítica ao programa quanto o reconhecimento às ONGs e aos ativistas brasileiros têm que vir de fora.
Aliás, o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, em seu discurso na abertura da Conferência Internacional de Aids, domingo passado em Washington, fez um vigoroso elogio aos ativistas e citou especificamente as ONGs brasileiras. Disse que se hoje é possível falar em controle da epidemia e vislumbrar o seu fim, isso se deve fundamentalmente às ações desses ativistas.
Viomundo – ONGs de aids estão fechando as portas no Brasil. Por quê?
Mário Scheffer – Vários motivos. Crise de pessoal, financeira, de sustentabilidade, não têm sede física, não têm dinheiro para pagar aluguel e telefone, têm que compor diretorias com apenas três pessoas porque não há mais gente disponível. Também não conseguem mais montar equipes para executar projetos, para chegar até as populações vulneráveis, o que só as ONGs são capazes de fazer.
Em outras palavras: algumas ONGs estão fechando as portas, como você disse. Mas está havendo também retração das atividades de todas elas.
Viomundo – Mas as críticas não se devem apenas à crise financeira e de pessoal das ONGs de aids?
Mário Scheffer – Essa é apenas uma das pontas da crise sem precedentes da resposta brasileira à epidemia, que também perdeu tecnicamente. Além disso, não há sensibilidade nem determinação do governo para perceber e para contribuir com a superação da crise das ONGs. Pelo contrário. Atualmente há uma crise política de relacionamento e mesmo de desprezo pela história das ONGs. O governo federal tem feito a opção — e isso não é só na área de aids — pela relação paroquial com a sociedade civil, uma política de cooptação e quebra-galho. Não ha mais crítica nem debate qualificado de ideias. Tivemos uma sucessão de perdas acumuladas.
Viomundo – Quais?
Mário Scheffer – Primeiro, perdemos a força do trabalho voluntário por meio do qual as pessoas participavam de nossas ONGs, exprimiam sua solidariedade, doavam tempo, trabalho e talento para a luta contra a aids. Não é mais uma causa mobilizadora e isso tem a ver com a imagem trabalhada pelo governo de que temos o melhor programa do mundo e que por aqui está tudo resolvido.
Segundo, com a ascensão das ONGs picaretas e bandidas, criadas para alimentar a corrupção em vários ministérios, cresceu o preconceito e foram impostas mais barreiras para as organizações sérias, que já tinham dificuldade em acessar recursos públicos.
Desde que realizado com critério, transparência, concorrência pública e rigorosa prestação de contas, as ONGs deveriam ter o direito de acessar fundos públicos para exercer o controle, a fiscalização e a participação nas políticas públicas, como acontece em várias democracias.
Terceiro, diante da imagem de que o Brasil hoje é um país rico e resolveu o problema da aids (o que não é verdade), acabou o apoio internacional às ONGs brasileiras de aids.
Resultado: sem ajuda de comunidades e empresas e com uma causa que não toca mais o coração de doadores e voluntários, passamos a viver a dificuldade crescente de assegurar recursos institucionais para a manutenção das ONGs. Com isso, arrefeceu o nosso ativismo e controle sobre as políticas públicas.
Viomundo – E os financiamentos governamentais vinculados a projetos?
Mário Scheffer – Eles fazem parte de um modelo esgotado em que as ONGs de aids foram reduzidas a mão de obra barata para prestação de serviços que o Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde não conseguem realizar. Não bastasse isso, muitas vezes estados e municípios não repassam esse recursos às ONGs e quando o fazem, não há continuidade nem avaliação da eficácia das ações financiadas.
Viomundo – Um pouco atrás você falou que o programa brasileiro de aids perdeu tecnicamente. Em que medida?
Mário Scheffer — Não houve renovação nem atualização dos quadros técnicos. Os desafios hoje são outros, mas a condução é conservadora, defasada. A criatividade, a ousadia e o diálogo permanente com a sociedade civil cederam lugar à arrogância. Sem a força e a autonomia de outrora, os programas de aids — o nacional e vários estaduais e municipais — estão isolados e enfraquecidos politicamente dentro dos governos.
Em São Paulo, por exemplo, muitos serviços municipais de aids estão sem médicos, os estaduais, superlotados, sendo privatizados, fechando leitos, e os programas de aids sem nenhuma governabilidade sobre isso.
Já o programa nacional nem sequer dá mais as fichas sobre a produção nacional de antirretrovirais genéricos. Hoje é um processo sem transparência. O Ministério da Saúde não dá um passo sem o amém da Casa Civil e dos fundamentalistas religiosos que integram a base governista, o que emperra programas de prevenção de aids.
Viomundo – O que ONGs e ativistas da área de aids querem?
Mário Scheffer — Queremos ser respeitados e ouvidos mas em novos patamares de relacionamento. Ninguém desistiu da luta. Nossas ONGs querem continuar atuando nas diversas frentes, na prevenção, na assistência das casas de apoio, nas assessorias jurídicas, na defesa dos direitos das pessoas que vivem com HIV. Queremos continuar fazendo o mesmo ativismo que nos levou a conquistar o acesso universal aos medicamentos, derrubar patentes, lutar contra a exclusão de coberturas pelos planos de saúde privados, acessar os vulneráveis e alçá-los à condição de cidadãos.
O mesmo ativismo que nos leva a apontar que, diferentemente do que dizem, o acesso aos antirretrovirais no Brasil não é universal, pois o diagnóstico tardio é altíssimo e ainda existem desabastecimentos ocasionais. Que nos leva a dizer que não existe política de prevenção adequada a um perfil de epidemia concentrada em certas populações, como os homossexuais, atualmente os maiores negligenciados de prevenção em aids no Brasil.
Hoje estão ameaçados princípios essenciais que forjaram o combate à aids no Brasil, que um dia chegou a quebrar barreiras e tabus. Essa ousadia necessária deu lugar a um programa sem vida, covarde, que promove autocensura, se alinha com forças retrógradas, como no caso recente da campanha dirigida aos gays.
Um programa que se debruça sobre glórias do passado e exibe uma real incapacidade , lentidão e perda da capacidade técnica e política . Não tem conseguido dar respostas à altura das novas dinâmicas e desafios da epidemia e a comunidade internacional passou a perceber isso.
Neste momento de grandes mudanças, com esperança concreta da cura e controle da aids, novas armas para prevenção, necessidade de ampliarmos a oferta de testagem e tratamento a todos os infectados, o Brasil está paralisado, com seus indicadores de mortalidade e de novas infecções pelo HIV estacionados. O programa brasileiro de aids parou no tempo e não é mais motivo de orgulho nacional.