Medicamento-mercadoria, quanto custa?
Confira o artigo de Felipe Assan Remondi e Renne Rodrigues, os dois são farmacêuticos e membros do Núcleo do Cebes de Londrina.
Em um país em que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre as causas de intoxicações em seres humanos, havendo um atendimento hospitalar por este motivo a cada 20 segundos , a ideia de comercializar medicamentos livre de prescrição em gôndolas de supermercados, sem que haja qualquer orientação ou indicação, seria no mínimo discutível.
Ainda assim, na quarta-feira, dia 25 de abril, o Senado Federal aprovou esta possibilidade evidentemente sem a devida apropriação e amadurecimento sobre o assunto. Mais curioso, a possibilidade de comercialização de medicamentos em supermercados foi aprovada em um projeto de lei com o objetivo de isentar tributos para produtos destinados a pessoas portadoras de necessidades especiais.
No âmago do sistema capitalista a saúde é tida não como um direito universal e necessário a dignidade humana, mas como um bem passível de comercialização e, portanto, de estratégias que visem o estímulo à produção e ao consumo. Esse processo pode ser denominado medicalização da sociedade.
Além da “doentificação” da vida – sim, doentificação da vida, ou em outras palavras a invenção de doenças a partir de situações até então normais – e do estímulo a realização de exames diagnósticos de alta especificidade (e elevado custo), uma das marcas características da medicalização é, sem dúvidas, o uso desenfreado e distorcido de medicamentos. Não precisamos fazer muito esforço para compreender como medida aprovada “oportunamente” pelos senadores reflete este processo e reforça o desvio da função social e clínica do medicamento. Mas cabe a reflexão: ao que ou a quem uma medida desta beneficiaria?
Existe inegável conexão entre a política econômica, industrial, científico-tecnológica e a construção de símbolos sociais pró-capitalismo. No contexto da medicalização, o medicamento representa um bom exemplo de como interesses se articulam para fomentar a propagação de interesses privados em detrimento ao bem coletivo. São inúmeras as estratégias: propaganda de medicamentos, patentes, lançamento de produtos que pouco acrescentam ao arsenal terapêutico, financiamento de campanhas eleitorais, disseminação de informações sobre os fármacos por meio de propagandistas, amostras grátis, brindes, bonificações, venda indiscriminada, entre muitas outras.
Na medida em que o consumo e o lucro são favorecidos, os efeitos colaterais de tal circunstância tornam-se evidentes. A Organização Mundial de Saúde aponta que o mau uso de medicamentos é um problema em todo mundo e revela alguns números alarmantes:
- 15% da população mundial consome mais de 90% da produção farmacêutica.
- Até 70% do gasto em saúde nos países em desenvolvimento correspondem a medicamentos, nos países desenvolvidos esse índice é menor que 15%.
- 50-70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa.
- 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente.
- Somente 50 % dos pacientes, em média, tomam corretamente seus medicamentos.
- Os hospitais gastam de 15% a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos.
Mesmo frente a esses dados, poderíamos ainda pensar – ingenuamente – que a venda de medicamentos nos supermercados facilitaria o acesso e contribuiria para a melhoria da qualidade de vida da população. Mas isso seria verdade?
Essa indagação perde sentido quando analisamos o número de farmácias no país, um total de mais 82 mil no ano de 2010. O Brasil é um dos países com maior número de farmácias no Mundo ! Considerando a população no mesmo ano (190 milhões de habitantes), existem 3,45 farmácias a cada 8 mil habitantes distribuídas de forma pouco racional, número bem superior ao recomendado pela Organização Mundial de Saúde, que é de 1 farmácia a cada 8 mil habitantes. Se cada farmácia representasse mais saúde e qualidade de vida seríamos, sem dúvidas, o povo com maior longevidade!
A aprovação da liberação da venda de medicamentos em supermercados ainda necessita da sanção da Presidência da República. Ao que tudo indica essa incongruência deverá ser vetada, de acordo com os princípios defendidos pelo próprio Ministério da Saúde. Ufa!
Por outro lado este acontecimento chama a atenção para um problema muitas vezes despercebido, porém de raízes profundas. O estado brasileiro precisa desempenhar com veemência seu papel regulador para garantir a saúde como um direito social, distante de interesses econômicos nocivos. Ao fortalecer o Sistema Único de Saúde deve-se primar pelo uso racional dos medicamentos como estratégia de socialização da medicina.
É inadmissível tratar o medicamento como uma mercadoria isenta de riscos, de relevância social, e, principalmente, de interesses políticos e ideológicos. Precisamos ir além. Aceitar que mesmo os fármacos de venda livre sejam vendidos em gôndolas de mercado é tão prejudicial quanto permitir que farmácias, que são estabelecimentos de saúde por natureza, se constituam como empórios, pratiquem uma dispensação irresponsável e estejam isoladas do SUS e da Atenção Primária.
Deparamo-nos com a uma situação que privilegia o uso descomedido – e o lucro – em detrimento à saúde da população. Uma situação que comercializa a saúde ao nível da obscenidade, que seria possibilitar a venda de medicamentos como qualquer outro produto, por exemplo, sabão em pó.
Mais um, dentre tantos, desfavores prestados pelo congresso a saúde e a cidadania do brasileiro. E o ano sequer chegou a sua metade!
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