Medicina baseia suas condutas em pesquisas com método falho
Folha Online – 04/01/2012
O vaivém das pesquisas médicas irrita muita gente. Um dia, é proibido comer ovo. No outro, ovo faz bem. Mas os problemas inerentes ao uso dos estudos estatísticos na medicina vão muito além disso.
Remédios um dia vistos como uma evolução são tirados do mercado depois que os pacientes começam a sofrer efeitos colaterais graves. Foi o caso do anti-inflamatório rofecoxibe, o Vioxx, vetado após causar mortes. Como é que as pesquisas realizadas para aprovar a venda da droga não captaram esse efeito?
É esse tipo de pergunta que o médico reumatologista Marcelo Derbli Schafranski, 36, tenta responder no livro “Medicina – Fragilidades de um Modelo Ainda Imperfeito” (Ed. Schoba, R$ 50).
Ele falou à Folha, por telefone, de Ponta Grossa (PR).
Folha – Por que as pesquisas se contradizem tanto?
Marcelo Schafranski – O grande problema é o modo como chegamos às conclusões. Por exemplo, como vamos saber se sal ou ovos fazem bem ou mal à saúde? O ideal seria fazer uma pesquisa com uma população enorme de gêmeos, no mesmo ambiente, parte recebendo sal ou ovo e parte não. Mas nunca vamos conseguir isso.
Baseamos nossas conclusões em estudos falhos. A maioria das pesquisas que aborda esse tipo de fator de risco é de coorte, em que se observa uma população, ou de caso-controle, em que se parte do fim [da pessoa já doente] para o começo. Estudos mais precisos, em que as pessoas são separadas em grupos e recebem uma intervenção (comer ou não ovo, por exemplo) são caros e, em geral, feitos por laboratórios para testar drogas e ter lucro. Ninguém gastaria dinheiro para fazer isso com ovo.
Quais são os principais problemas conceituais que aparecem nas pesquisas?
São questões que fazem a pesquisa começar errado já na origem. Uma delas é o chamado “p”, a probabilidade de a hipótese estar certa ou errada. Para um estudo ser aceito, o estabelecido é que a probabilidade de a hipótese provada estar errada deve ser menor do que 5%. Mas de onde vem esse valor? Isso não está escrito em lugar nenhum. A medicina baseada em evidências, na verdade, mistura duas teorias estatísticas diferentes. Outro problema é o número de hipóteses. O ideal é ter só uma. Um estudo publicado no Canadá em 2006 cruzou causas de internação e dados demográficos, até signo. Descobriram que pessoas de Touro têm mais doença diverticular do cólon. O que isso significa? Nada. Quanto mais comparações, maior é o risco de descobrirmos coisas que não têm nada a ver.
O sr. critica estudos sobre remédios que medem só se eles melhoram resultados de exames em vez de se reduzem mortalidade. Isso leva a condutas erradas?
Isso é feito para economizar e ter respostas rápidas. Temos remédios contra hipertensão no mercado que não provaram se reduzem mortalidade ou ocorrência de derrame. Eles controlam a hipertensão, ótimo. Mas e se depois a droga começa a matar os consumidores por intoxicação? Se o estudo tivesse analisado a mortalidade, não aconteceria isso.
O sr. diz que isso acaba levando a uma medicina centrada no médico em vez de no paciente. Como é isso?
O exemplo clássico é a osteoporose. O paciente chega com uma densitometria óssea indicando osteoporose, o médico receita uma droga e a pessoa, depois, refaz o exame. Aí o médico diz: “Sua densitometria melhorou, sua osteoporose está indo bem.” Mas a osteoporose está indo bem no exame, essa é uma variável centrada no médico. O que importa para o paciente é quebrar ou não um osso. Isso não depende só do resultado do exame, mas de outros fatores, como iluminação do ambiente, se ele está enxergando bem etc.
O sr. diz que a publicidade excessiva para certas doenças, como a criação de dias temáticos, pode causar um viés nos diagnósticos. Por quê?
Se um psiquiatra começa a ir a muitos congressos sobre depressão, a receber visitas de representantes de laboratórios com remédios para depressão, a ler artigos sobre isso, a tendência é que ele diagnostique mais depressão. O paciente que recebe essas informações também pode começar a se enquadrar nos sintomas.
Outra questão são as campanhas com exames de rastreamento. Num rastreamento de diabetes, você vai achar pré-diabéticos. Mas pré-diabetes aumenta mortalidade? Não está provado que isso realmente acontece. Muitos desses pacientes limítrofes vão acabar tomando remédios sem que haja evidências de que isso vai ajudá-los.
O que poderia ser feito para combater os vieses da medicina baseada em evidências?
Estudos populacionais independentes, que são caros e só podem ser feitos pelo governo. Em vez de pegar mil pessoas que usam um medicamento, seria possível pegar o país todo, para saber, por exemplo, se certa droga reduz a mortalidade.
Defendo também que os estudos venham com os dados básicos, sem os cálculos estatísticos mais complexos. Quem está lendo que faça os cálculos que julgar necessário. O problema é que os estudos ficariam sem conclusão, ficaria a cargo do leitor, do médico, que teria de saber estatística para interpretar isso. É mais fácil ler o resumo da pesquisa e acreditar nele.
Marcelo Derbli Schafranski tem 36 anos, é de de Ponta Grossa (PR) e é reumatologista, doutor em medicina interna pela Universidade Federal do Paraná e professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa.