Médicos x mulheres?
Publicado em: 29/09/2008 12:27:00
Por Adriana Tanese Nogueira(*)
O professor Antonio Carlos Lopes perguntou nesta seção (“Parto normal ou cesárea”, 12/9): “Mas será que a mãe tem realmente pleno domínio desse processo [de dar à luz] e amplas condições de tomar tal decisão sozinha [parto normal ou cesárea]? A palavra do médico, sua experiência cotidiana, a bagagem de conhecimento científico não valem nada numa hora dessas?”.
Substituímos o sentimental “mãe” pelo preciso mulheres: são as mulheres capacitadas para decidir sobre seus partos, e os médicos, dispensáveis? É aqui posto o dedo na ferida. Os médicos se melindram pela possível perda de terreno. Eles têm razão, pois ao ganharem espaço, as mulheres os depõem de seu tradicional pedestal.
Há uma inequívoca redistribuição de poderes no processo de humanização do parto, redefinindo responsabilidades e lugares. Os médicos continuam sendo nossos melhores e indispensáveis “amigos” -quando necessários. Às mulheres cabe retomar seu papel ativo. Humanizar o parto é um processo de ética, cidadania e ação social. Renovação necessária, basta ver a quantidade enorme de denúncias que o CRM recebe contra médicos obstetras.
Reavaliar práticas e concepções é essencial para resgatar o parto como experiência integral da mulher. Se ela quer ter um parto ativo e responsável, é preciso que ele, o médico, abra espaço, se coloque de lado, preste um serviço, retomando seu lugar de origem, que é o de tratar a patologia. Parto é evento médico em algumas circunstâncias. Na maioria das outras é um evento fisiológico perfeitamente compatível com o corpo feminino.
A polêmica parto normal x cesárea, portanto, não diz toda a realidade. O que está em jogo é poder e competência. Terão as mulheres condições de pensar com suas cabeças e entranhas e tomar uma decisão responsável a respeito de como dar à luz seu filho?
Ao tomarem as rédeas do processo, o que os médicos obstetras fazem é alimentar as inseguranças das mulheres. E, coincidentemente, eles acabam executando o único parto que conhecem: o medicalizado ou a cesárea.
A maioria deles nunca assistiu a um parto espontâneo e natural. Sua formação acadêmica se baseia na intervenção, válida nos casos de patologias e distocias. É compreensível, pois, que prefiram o que conhecem, sendo a cesárea o melhor parto para eles, pois isenta a mulher de participação.
Na cesárea, o médico é o sujeito único. O resultado é a perda da relação com a parturiente e o alheamento do processo fisiológico do parto. Como podemos nós, mulheres, confiar em profissionais que desconhecem o que é um parto espontâneo e sem intervenções? Até quando hipertrofiar os supostos casos de risco para realizar a cirurgia e salvar as aparências, já que é antiético abrir uma barriga sem necessidade?
Mas os desequilíbrios que apontamos não devem nos desviar do objetivo. A humanização do parto não visa destituir os médicos de seus conhecimentos. Quer enobrecê-los ao reservar o lugar que lhes compete -emergência e patologia. O parto de baixo risco deve ser atendido por quem tem experiência em “normalidade”, que é a missão da nova faculdade de obstetrícia da USP Leste, ao formar obstetrizes que tratem o parto como evento fisiológico e psicossocial.
A humanização do parto não é e não deve ser entendida como uma luta para mudar os monopólios, mas reflete a necessidade de despoluir as relações profissionais e torná-las mais responsáveis e éticas. Não é a mulher que vai comandar e o médico não deve privá-la de uma experiência única e irrecuperável. O desafio que está posto é a criação de uma relação de aliança baseada em competência e serviço, transparência e confiança recíproca.
Isso vem ao encontro de uma dupla exigência: a das mulheres, que, ao viver seus partos em autonomia e liberdade, depararam com experiências poderosas de autodescobertas e iniciação que ninguém tem o direito de tirar-lhes. A Organização Mundial da Saúde e as evidências científicas, por sua vez, sustentam a segurança e viabilidade do parto desmedicalizado.
Se a tecnologia substituiu a honesta relação olho no olho e promoveu o estranhamento dos processos fisiológicos que pretende curar, seu uso deve ser radicalmente revisto, pois já não estamos mais fazendo medicina.
Concluindo e respondendo à pergunta do professor Lopes: não, a mulher não toma essa decisão sozinha, mas em parceria com o médico experiente, que sabe apoiá-la em seu processo interior de autocapacitação a parir, deixando de ser uma paciente.
Humanização do parto significa amor e ciência se dando a mão na construção de relações sociais sólidas e respeitosas.
(*) Adriana Tanese Nogueira é presidente e coordenadora da ONG Amigas do Parto, psicoterapeuta e escritora. Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na edição do dia 29/09/08.