Ministério permite manual da Fifa que prega abstinência para prevenir aids
O Estado de S. Paulo
A pasta pediu para que o material fosse alterado antes da divulgação, mas apenas uma parte do texto foi mudada pela federação de futebol
O Ministério da Saúde permitiu a distribuição de um manual da Fifa que prega a abstinência e a fidelidade para prevenção da aids, orientações que estão em desacordo com a política tradicionalmente adotada pelo Brasil. A pasta pediu que o material fosse alterado antes da divulgação, mas apenas uma parte do texto foi mudada pela entidade. A alternativa – criticada por associações não governamentais e especialistas em saúde pública – foi permitir a divulgação do material com uma errata.
“A cartilha deveria ser recolhida. Claro que ninguém presta atenção numa folha anexa”, afirmou o assessor de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Juan Carlos Raxhach. No Brasil, ações de prevenção sempre tiveram como base o uso do preservativo.
“Uma mensagem como essa, pregando fidelidade e abstinência, é anticientífica, é um desserviço”, afirmou o professor da Universidade de São Paulo (USP), Mário Scheffer. Ele lembra de uma pesquisa publicada no British Medical Journal, de 2007, que traz uma revisão de 13 estudos com 15 mil jovens entre 10 e 21 anos. O trabalho mostra que programas de abstinência sexual não impedem práticas sexuais de risco para a infecção pelo HIV. Também não ajudam a impedir os casos de gravidez indesejada.
África do Sul
A distribuição do material começou a ser feita em fevereiro. As cartilhas serão usadas por professores de 132 escolas de ensino localizadas nas cidades-sede de jogos da Copa. O material não é inédito. Foi desenvolvido em 2009 e 2010 e usado na África do Sul, país que já adotava a fidelidade e abstinência como meios de prevenção.
O projeto trabalha com 11 temas relacionados à saúde, como prevenção de drogas e de obesidade. A proposta, com as bênçãos dos ministérios da Saúde, Educação e Esportes, é que as escolas escolhidas façam os trabalhos durante ou depois do turno escolar. Na apresentação do material, a Fifa afirma que o objetivo é levar “educação séria sobre saúde”. “É muito triste – para dizer o mínimo – que a Fifa tenha autonomia para reproduzir esse material, sem levar em consideração as peculiaridades do País”, afirmou Raxhach.
Scheffer considera que as falhas apresentadas no documento são inúmeras. “Além de representar um retrocesso no debate sobre aids, a cartilha enfatiza a responsabilidade individual, não as vulnerabilidades de grupos, algo que consideramos essencial ser trabalhado”, comenta. “Vemos ali uma prescrição de comportamentos, algo que é totalmente equivocado.”
Sinal de retrocesso. Raxhach avalia que o governo foi condescendente ao permitir a distribuição do material da Fifa – trata-se de mais uma queixa em relação a um programa do ministério nessa área. “Esse é apenas mais um sinal do retrocesso da política de aids adotada hoje no Brasil. Vai muito além de questões religiosas”, afirmou o especialista. “Sabemos que a bancada evangélica tem forte influência dentro do governo, sobretudo em um ano eleitoral.”