Moradores bebem e pagam por água contaminada

Diário do Nordeste | Especial “Viuvas do Veneno”

Limoeiro do Norte (CE) / Petrolina (PE) / Lucas do Rio Verde (MT) / Juazeiro (BA). Desde 2011, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta os agrotóxicos como a segunda maior causa de contaminação das águas no Brasil. Só perde para o esgoto doméstico. Pelo menos 25% dos municípios brasileiros registram contaminação do solo por agrotóxicos e fertilizantes. O descarte irregular de embalagens vazias é apontado como uma das principais causas de contaminação, embora se venha investindo muito na melhoria do recolhimento.

Controle de vetores

Um risco de contaminação por produtos químicos pode ser mais silencioso do que a de agrotóxico nos campos agrícolas: o de combate aos vetores causadores de doenças, como Aedes aegypti. “Um produto químico, mesmo em pequenas doses, pode causar reações diferentes em pessoas diferentes. Isso é muito relativo. O que não faz mal a um pode fazer a outro. O próprio Ministério da Saúde estimula o uso de larvicida quando não há estudos conclusivos, o que pode agravar casos de contaminação”, afirma a médica Idê Gurgel, doutora em ciências da saúde e pesquisadora da Fiocruz no Estado de Pernambuco.

No dia 1º de março de 2013, 30 estudantes de Mirandiba, no sertão pernambucano, foram hospitalizados por suspeita de intoxicação, após consumir água do bebedouro. Os sintomas apresentados foram dores abdominais, náusea e vômitos. Investigações apontaram que a causa foi um larvicida colocado na caixa-d´água do colégio para combater a reprodução do mosquito da dengue.

Veneno na caixa-d´água, na torneira da cozinha, no canal, no tanque de abastecimento e até nas águas subterrâneas. A maior parte do agrotóxico usado na plantação escoa. Começa pela folha e tem vários outros caminhos: o ar, o solo e os rios. Dessa forma, várias comunidades em regiões agrícolas bebem água contaminada com veneno agrícola sem saber.

Há estudos comprovando isso em Limoeiro do Norte (CE) e Lucas do Rio Verde (MT). Em Petrolina (PE), os relatos dos trabalhadores aumentam a suspeita de que parte das intoxicações ocorram a partir da água. Os dados foram compilados no Dossiê Agrotóxicos, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Veneno na torneira

No poço profundo no quintal da casa de Valdo de Cássia, na comunidade de Tomé, em Limoeiro, foram encontrados 12 tipos de agrotóxicos, entre eles glifosato, barbaril e carbofurano, altamente tóxico e com potencial carcinorgênico. Outra leva de produtos é encontrada nas comunidades de Santa Maria, Santa Fé, Lagoa da Casca e Carnaúba. A pesquisa foi realizada em 2009 e divulgada no ano seguinte pelos especialistas.

Foram colhidas 24 amostras de água, levadas para análise no Laboratório do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Ambientais Avançados da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Todas as amostras apontaram a presença de agrotóxicos. Vários desses elementos foram ou ainda estão em fase de reavaliação pela Anvisa, justamente pelo elevado nível de toxicidade. É o caso de glifosato, endosulfan e carbofurano.

A Federação das Associações de Produtores do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi (Fapija) alerta que as águas dos canais e dos reservatórios para as casas de bomba são proibidas para consumo humano, sendo de uso exclusivo para irrigação. Mas, como não há outra forma de levar água para centenas de famílias, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae) capta água e faz o tratamento com pastilhas de cloro, o que não combate os ingredientes ativos dos agrotóxicos.

A médica e pesquisadora Raquel Rigotto, da Universidade Federal do Ceará (UFC), considerou o uso intensivo de agrotóxicos nos plantios o responsável pelas contaminações verificadas. A Câmara de Vereadores de Limoeiro do Norte aprovou lei municipal que autoriza a pulverização aérea, embora atualmente esteja proibida no Estado do Ceará.

Curiosamente, no mesmo ano, a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), órgão da Secretaria Estadual dos Recursos Hídricos, apontou a presença de agrotóxicos em seis de dez amostras de poços profundos com água do aquífero Jandaíra, um dos maiores do Nordeste e situado entre os Estados do Ceará e do Rio Grande do Norte. De acordo com o estudo, o registro dos produtos químicos estava dentro dos limites permitidos pela legislação.

Os órgãos públicos de saúde ponderam qualquer nível de alarme com essa informação. Isso porque existem, normativamente, níveis permitidos de agrotóxicos na água para consumo. A permissividade tem aumentado com o tempo, na medida em que o mercado brasileiro apresenta novos componentes químicos na função de herbicidas, fungicidas e praguicidas.

Limites permitidos

A primeira norma de potabilidade de água no Brasil, de 1977, permitia a presença de 12 tipos de agrotóxicos, de dez produtos químicos inorgânicos (metais pesados), de nenhum produto químico orgânico (solventes). A segunda norma de potabilidade (1990) permitia a presença de 13 tipos de agrotóxicos; a terceira norma aumentou para 22 tipos de agrotóxicos. Por fim, a quarta e mais recente portaria do Ministério da Saúde passou a permitir a presença de 27 tipos de agrotóxicos.

“Esta ampliação pode levar a uma cultura de naturalização e consequente banalização da contaminação, como se esta grave forma de poluição fosse legalizada”, conclui o Dossiê Agrotóxicos da Abrasco.

O município de Lucas do Rio Verde, no Estado do Mato Grosso, tem bem menos habitantes que Limoeiro do Norte, mas sua importância no PIB agropecuário brasileiro é de soma incomparável. Lá está a maior produção de soja do Brasil. Também um dos maiores consumos de agrotóxicos – 136 litros per capita.

De 2007 a 2010, pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), identificou que as pulverizações aéreas e por trator eram feitas a menos de 10 metros de fontes de água potável, córregos, de criação de animais, de residências e periferia da cidade. Isso desrespeita um decreto-lei estadual, de 2009, que dá o limite mínimo de 300 metros para aplicação. Essa medida, por sua vez, já representava uma flexibilização à Instrução Normativa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), de 2008, que estabelecia 500 metros de distância.

Em setembro de 2012, o Estado do Mato Grosso flexibilizou ainda mais a distância de aplicação de cidades e nascentes. O que variava de 150 a 300 metros passou a ser de 90. O Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea-MT) afirma que foram realizados estudos técnicos antes do decreto.

“É uma situação insustentável. Aumenta o problema ambiental”, afirma Wanderley Pignatti, médico sanitarista e pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), coordenador dos principais estudos feitos naquele Estado sobre os impactos dos resíduos agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente.

Veneno na escola

Aplicação tão próxima de água facilita o relacionamento com outros dados da pesquisa: foram encontrados vários tipos de agrotóxicos em 83% das amostras de 12 poços de água potável em seis escolas públicas de Lucas do Rio Verde. Nos mesmos locais, agrotóxicos em 56% das amostras de chuva na área do pátio das escolas e em 25% das amostras de ar desses pátios, monitoradas por dois anos.

Em duas lagoas da cidade também foi registrada a presença de agrotóxicos e, mais do que isso, resíduos de veneno no sangue dos sapos e evidências de má formação congênita nas gerações seguintes desses anfíbios foram constatadas.

A exposição a agrotóxicos em Lucas do Rio Verde é tamanha que, em 2010, todas as amostras de leite materno coletadas de 62 mulheres lactantes apresentaram contaminação com pelo menos um tipo de agrotóxico analisado pelos pesquisadores.

Mergulho impróprio

No Vale do Rio São Francisco, entre os Estados de Pernambuco e Bahia, o polo Petrolina-Juazeiro está cercado de canais para irrigação. Uva e manga estão entre as principais culturas. Mas a mesma água que semeia a uva lava os pratos, as panelas e mesmo o corpo todo das famílias no entorno do assentamento Santa Ana, em Juazeiro.

Sem achar que isso fará mal, crianças brincam dentro da água a apenas cinco metros da plantação que, em determinados meses do ano, recebe voos rasantes do avião pulverizador. Mas todo mês há outras formas de aplicação.

A realidade (e, portanto, a justificativa) é a mesma de Limoeiro do Norte, no Ceará: “não tem outra água pra se usar, é essa mesmo. Não sei se está contaminada. Mas se estiver, é melhor morrer mais pra frente do que morrer de sede, que mata logo”, resume a agricultora Albertina Silva.

Constatação
25% dos municípios brasileiros registram contaminação do solo por agrotóxicos e fertilizantes. Descarte irregular de embalagens seria uma das causas.
24 amostras de água para consumo humano em comunidades da Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte (CE), apresentaram agrotóxicos, em 2010.
27 tipos de agrotóxicos são permitidos na água pela norma de potabilidade do Ministério da Saúde em níveis determinados de segurança para o corpo humano.

MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER