Mortos e Voluntaristas: a expropriação da vida e a Copa do Mundo

Por Heleno R. Côrrea Filho*

A vida dos trabalhadores da Construção Civil pendurada pelas linhas de vida tem que ser estritamente vigiada pela sociedade […] Os defensores do Sistema Nacional de Saúde Inglês foram aos estádios e passaram um filme de abertura para todos os torcedores. Os brasileiros viram sem saber do que se tratava por que a TV Brasileira borrou o significado. Na Inglaterra ficou clara a luta contra o governo neoliberal que defende a privatização de tudo e a degradação do NHS.

 

A lógica do capital de expropriar o lucro com o preço da vida atinge de maneira aguda os trabalhadores da Construção Civil. Contra ela se levanta o mote que diz “Não vai ter copa”. Quando se aceleram as construções de estádios de futebol morrem mais trabalhadores, e Pelé acha natural. Não é só ele. Os donos de bancos, as seguradoras, os rentistas, as Famíglias Marinho, Frias, Mesquita, Civitta, Saad, e seus troncos substabelecidos nos estados do Brasil também acham. A ideia de que trabalhar é correr o risco de morrer está implantada no subconsciente da própria classe trabalhadora. A culpa sempre é da vítima. Veja-se a recente decisão do Judiciário de que o piloto e copiloto da TAM foram os culpados da colisão e incêndio de um avião que voava com freio travado por ordem da companhia. Culpados, mortos e desonrados.

A vida dos trabalhadores da Construção Civil pendurada pelas linhas de vida tem que ser estritamente vigiada pela sociedade. A palavra de ordem para lutar pela vida dos trabalhadores deveria ser organizar e mobilizar todos, incluindo os que vão se alegrar e torcer com os jogos de futebol que logo vão acabar. Os defensores do Sistema Nacional de Saúde Inglês foram aos estádios e passaram um filme de abertura para todos os torcedores. Os brasileiros viram sem saber do que se tratava por que a TV Brasileira borrou o significado. Na Inglaterra ficou clara a luta contra o governo neoliberal que defende a privatização de tudo e a degradação do NHS.

Depois da copa, continuarão no Brasil as obras de mobilidade urbana, as ferrovias, as hidrovias, os portos sujos e limpos, o agronegócio sujo e desmatador, as hidroelétricas e a mineração genocidas, as refinarias, as perfurações em alto mar, ao lado do trabalho sujo e indecente dos serviços nas cidades, incluindo a reciclagem do lixo que as empresas que vendem descartáveis não recebem de volta. Os trabalhadores não estão morrendo por causa da copa, não sentem isso e não pensam isso. É preciso qual tipo de óculos para ver? Qual imagem vai ficar para o futuro quando estádios cheios de gente forem transmitidos pela TV mostrando uma criança paraplégica com exoesqueleto dando o chute simbólico inicial dos grandes jogos? Será possível que a imagem pública será de fiasco e fracasso? Qual será o lucro dos trabalhadores e da classe média radicalizada servindo de bucha de canhão para treino das armas de matar e reprimir massas em uso pelas Polícias Militarizadas, com justiça e educação também militarizadas? A imagem predominante de ufanismo e pau-neles será transmitida com sucesso pela mídia?

É visível a imobilidade das Centrais Sindicais que se surpreendem quando as usinas hidroelétricas genocidas e destruidoras engolem trabalhadores e as hordas de homens desatinados repetem Canudos, queimando canteiros de obras como aconteceu em Santo Antônio, Girau e Belo Monte. Acontecerá provavelmente na Nakba que está prevista para a sequência de usinas do Rio Tapajós. Ninguém sabia de nada e se sabia tinha medo de ir contra. É a chantagem do capital. Se acharem ruim vou embora e deixo todos sem emprego.

Quem disse nos anos 1970 para a população brasileira que a copa do mundo de futebol não tinha nenhuma importância foi esquecido lá mesmo, no minuto seguinte. Muitos presos políticos foram torturados ao som de prá-frente-Brasil e seus nomes não constam da lista que os brasileiros conhecem de trás para diante compondo o time que Garrastazu recebeu na volta e Maluf presenteou com um fusca para cada um. Foi uma apoteose popular em contraste à catástrofe política.

A tortura de presos políticos durante a copa rendeu o contato com bandidos comuns nos presídios, em que a ingenuidade e o voluntarismo de alguns revolucionários presos os levou a compartilhar técnicas de contra insurgência que deram origem aos bandos organizados dentro dos presídios do Rio e de São Paulo. Foi transferido ao crime comum o conhecimento para expropriar, não mais a classe dominante, mas o cidadão comum. Quem não adere à nova organização criminosa morre. Foi a catástrofe social.

Isso não justifica que na segunda Copa Mundial de Futebol a ser realizada no Brasil se repitam como farsa qualquer um dos dois movimentos catastróficos, seja pela denúncia de um evento que passa em sessenta dias, seja pelo confronto com bandidos nas ruas. O confronto agora seria estimulado por potências financiadoras interessadas em desestabilizar toda a América Latina, de Caracas a Buenos Aires, com dinheiro das siglas NED, OTPOR, Anonymous, Back Blocs, e outros mascarados quaisquer que se candidatem a repetir personagens como Escadinha, Beiramar e cabo Anselmo. Haverá voluntaristas deslumbrados para ajudar como sempre, pensando que estão sendo carregados por Partisans quando na verdade estarão sendo “portare via a sepelire”. Desde que o objetivo seja retroceder barreiras nacionais valerá tudo, como sempre. Segundo esse ideal macabro do “Não vai ter copa” Natal e Manaus deveriam repetir Cairo e Srebrenica.

A denúncia e o trabalho de impedir novas mortes seriam mais eficazes se colocassem os nomes, as vidas e as histórias de cada trabalhador morto numa placa de aço na porta das obras em cima e ao lado do nome da Companhia, do Capataz e do Administrador de mais alto nível que determinou acelerar o trabalho de forma a matar o operário. Esse trabalho árduo não foi feito por nenhum de nós ainda, e por isso seria falta de humildade colocar a culpa sobre os outros que também não o fizeram. Nossa troca de culpas recíprocas não alivia o fato de estarmos aprisionados na teoria da culpa da vítima e de que trabalhar é arriscado. Enquanto estivermos culpando alguém estaremos algemados na chantagem do capital ameaçando “levar o PAC para casa” e acabar com o jogo. Levarão embora o Pré-sal, o Bolsa Família, o Prouni, o FIES, o Minha casa minha vida, a indústria naval, as refinarias, as ferrovias, e o desemprego voltará a 20%. Se dependesse dos bancos internacionais essa farra de desenvolvimento social controlado com subsídios para a classe baixa já teria acabado faz tempo. Estaríamos todos com a vara e o anzol na mão de novo, sem peixe nenhum no rio, e com a turma do “pó-demais” voando seu dinheiro para as ilhas Caiman.

 

*Heleno R. Côrrea Filho é diretor Ad Hoc do Cebes. Médico com doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e livre-docência em Epidemiologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).