Não abjurar
Uma tarefa bem mais amena consiste no reconhecimento das mil e uma utilidades dos vaticínios acerca de nossas supostas inclinações reacionárias
Ligia Bahia
É difícil calcular o número de caras ocultas pela sombra das sentenças proferidas, a torto e a direito, sobre o conservadorismo da sociedade brasileira.
Uma tarefa bem mais amena consiste no reconhecimento das mil e uma utilidades dos vaticínios acerca de nossas supostas inclinações reacionárias. Na saúde, a serventia das convicções sobre o apego às tradições inclui desde a atribuição de conotações biológicas aos valores religiosos à elaboração e promulgação de normas que dinamizam a estratificação e iniquidade. Entre outras repercussões práticas, o veredicto sobre o teor rarefeito de solidariedade na atmosfera justifica a transferência de recursos públicos para empresas privadas.
Esses argumentos mobilizados pelos poucos que auferem as benesses advindas da segmentação da atenção à saúde fazem-nas parecer naturais e imutáveis. Crentes de variados matizes não cansam de apregoar os efeitos políticos catastróficos que adviriam de uma virada pública na saúde.
Propalam que a desigualdade no acesso e utilização de serviços de saúde e a expansão do empresariamento são meras irradiações do crescimento econômico.
Entretanto, o condicionamento das perspectivas de alargamento dos negócios na saúde à retirada de recursos do fundo público ficou explícito nas demandas apresentadas pela Confederação Nacional de Saúde e diversas entidades empresariais aos candidatos a presidente. Com um olho nos consumidores das classes C e D e outro nos cofres públicos, os empresários propõem: reduzir os tributos de suas atividades; expandir planos privados com restrições de cobertura; criar o sistema S de saúde e solucionar o endividamento dos hospitais filantrópicos. No primeiro debate entre os presidenciáveis, parte dessas propostas foi calorosamente acolhida. Ironicamente, as fragilidades de instituições privadas de saúde, rotuladas de autônomas e eficientes nas arenas políticas, despertam solidariedade. Trata-se de um caso isolado de reversão de egoísmo genético em compaixão ou apenas uso conveniente da índole generosa de nossa formação social? Há indícios mais do que suficientes sobre necessidade de relativizar as afirmações generalizadas e as associações entre individualismo e preferência da sociedade pelo sistema privado de saúde. No mínimo é preciso reconhecer que as tentativas anteriores de separação da oferta de serviços para clientelas inscritas ou não nas coberturas de planos de saúde fracassaram em função da insuficiência dos recursos assistenciais privados. Sabemos que determinados serviços públicos essenciais, inclusive para clientes de planos e seguros de saúde, não podem ser facilmente substituíveis ou rapidamente repostos. Além disso, o acúmulo de experiências negativas com o atendimento intermediado pelas empresas de planos e seguros de saúde gera conflitos e tensões visíveis.
Verificar que entidades privadas setoriais não possuem imunidade especifica à má gestão e corrupção intensifica o desencanto.
Mas constatar dissensos em relação ao sistema privado de saúde não significa uma adesão entusiástica ao público ou sequer disposição para encarar adversidades antepostas à efetivação do SUS. A palavra SUS praticamente desapareceu nas propagandas eleitorais. Quem pronuncia SUS imediatamente adjetiva, SUS “de qualidade”. Em vez da exposição de diretrizes sistêmicas sobre o planejamento das atividades de proteção aos riscos e atenção à saúde universal e integral assistimos ao anúncio de obras já realizadas e por construir e de aquisições de equipamentos. Assim, o sumiço do SUS — mesmo quando inspirado por avaliações positivas sobre os avanços nas coberturas e identificação precisa de lacunas assistenciais — abre espaço para a cobrança de custos políticos, via favorecimento de alternativas privadas para organizar redes assistenciais.
Quer-se resolver, com investimentos públicos, problemas de solvência e aumentar as margens de lucro das empresas privadas ou priorizar desafios referentes à abrangência, coordenação e desempenho da totalidade do sistema de saúde? O Brasil do século XXI tem plenas condições de dispensar a ilusão economicista, segundo a qual a saúde é um item de consumo como outro qualquer. As tendências mundiais de aumento das responsabilidades governamentais e os custos ascendentes das ações de saúde requerem a não dissociação entre direitos sociais de deveres fiscais.
Portanto, não é apenas a qualidade dos procedimentos assistenciais que está na berlinda. Precisamos fixar políticas e instituições mais complexas e potentes que perdurem além de cada ciclo de poder.
Hoje é Dia do Médico. Comemorálo significa render homenagens a quem não abjura a ciência, e se responsabiliza pela geração de solidariedade e redução das desigualdades na saúde.
LIGIA BAHIA é professora de Economia da Saúde na UFRJ.
Artigo publicado no O GLOBO (18/10/2010)