Neoliberalismo tingido de verde de olho na Rio + 20
Carta Maior – 17/05/2012
Em entrevista à Carta Maior, a antropóloga e ambientalista Iara Pietricovsky adverte para os riscos do agenda da chamada economia verde na Rio+20. “O ambiente de crise financeira dos países ricos estaria jogando água no moinho da lógica neoliberal de enxugamento dos estados nacionais também na área ambiental e abrindo generosos parágrafos para o setor privado se credenciar como o principal gestor de um novo paradigma econômico e ambiental”, diz.
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro – A antropóloga e ambientalista Iara Pietricovsky faz parte do grupo de articulação da Cúpula dos Povos (evento das organizações não-governamentais que será realizado no Aterro do Flamengo em paralelo à Rio + 20) e tem acompanhado as negociações oficiais das Nações Unidas em Nova York para a redação do documento oficial a ser apresentado na Rio + 20.
O que ela tem visto não é animador. Em um ambiente de crise financeira dos países ricos, os rascunhos do documento abrigam a lógica neoliberal de enxugamento dos estados nacionais ao tratarem e formularem políticas ambientais, e abrem generosos parágrafos para o setor privado se credenciar como o principal gestor de um novo paradigma econômico e ambiental, nessa ordem de importância.
Em entrevista à Carta Maior, Iara classifica a Rio + 20 em geral e a Cúpula dos Povos em particular como momentos cruciais para, a partir de grandes mobilizações populares, questionar esse modelo de “economia verde” e as diferentes vozes iniciarem um processo longo, mas efetivo, de uma nova agenda ambiental e econômica para o século XXI.
O que está em disputa na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20?
É o modelo de desenvolvimento e as opções para um futuro de sustentabilidade para o planeta Terra. O que nós, da Cúpula dos Povos, defendemos é um modelo que significa uma crítica frontal a mercantilização e financeirização da vida. E somos totalmente favoráveis ao aprofundamento da ideia de bens comuns. Ou seja, bens água, bens ar devem continuar sendo bens comuns, que devem ser preservados e não podem ser privatizados e mercantilizados.
E como transformar essas críticas em ações?
Nós estamos há algumas décadas apresentando e constituindo ações e experiências concretas alternativas. Um exemplo bastante evidente é a agricultura familiar, que está relacionada diretamente às questões climáticas, de insustentabilidade, de expansão de gado e desmatamento, esse confronto que está colocado na agenda rumo a um modelo sustentável.
Nós sabemos que a agricultura familiar, a agroecologia, é responsável por 75% da comida que vai ao prato do brasileiro. Ou seja, é real e concreto que esses setores sejam financiados, sejam vistos como fundamentais e estratégicos para o desenvolvimento de uma política pública, porque eles geram empregos, fixam as pessoas no campo, produzem alimentos de qualidade, estimulam comércios locais e processos complementares de produção. É uma alternativa a um modelo que pensa só em grande escala, que pensa em termos de mercado, a plantar soja aqui para os animais lá na China comerem. É outra lógica, e é uma lógica de sustentabilidade, de valorização e de humanização. Estaremos o tempo inteiro defendendo essas alternativas na Cúpula dos Povos, em contraposição aquilo que está sendo defendido pelas grandes empresas e corporações.
Um dos pontos da agenda da Rio + 20 é a questão da governança global dentro desse rearranjo de sustentabilidade e desenvolvimento. O que está inserido aí? Quem vai gerir essa nova engrenagem, e para quem?
Essa é a grande questão. Hoje, da maneira como a coisa está colocada, quem vai gerir isso é fundamentalmente o Banco Mundial, que é uma instituição constituída para aprofundar e construir resposta a esse modelo que a gente vive hoje, que é um modelo que já se provou incapaz de dar solução inclusiva, afirmando o direito de todos e todas a uma vida digna.
Então são instituições financeiras e comerciais – OMC (Organização Mundial do Comércio), Banco Mundial e G-20, como uma instância política que vem formulando também sobre tudo isso, – que não correspondem à necessidade de democratização e participação para a construção de soluções que sejam de fato soluções que beneficiem à totalidade da população e a preservação do planeta. Assim, o que está hoje como cenário de governança global e quem está gerindo essas propostas são aqueles que vêm produzindo esse modelo que está falido.
O que nós queremos é pensar outras alternativas, outra arquitetura internacional que seja feita de forma democrática e reconhecendo a diversidade, as responsabilidades comuns porém diferenciadas dos países na produção deste modelo predador.
Os estados nacionais chegarão a assinar a transferência do poder de gestão ambiental para instituições como G-20 e Banco Mundial? Em quanto essa transferência é reversível? Qual o espaço de manobra para iniciativas como a Cúpula dos Povos interferirem nesse processo?
Eu estou acompanhando o processo oficial da ONU pela Cúpula dos Povos e o que eu estou vendo é um processo de aceleração de uma privatização de todas as definições que produziriam essa transição de um modelo predador para um modelo sustentável. Os estados estão se desobrigando e as grandes corporações se aproximando para serem as responsáveis e promotoras desses novos acordos…
…com documentos oficiais assinados?
Isso está lá no documento (N.R.: Documento oficial da ONU sendo rascunhado em Nova York para a Rio + 20). O documento fala claramente no preâmbulo e no primeiro capítulo sobre economia verde que o principal aliado para a transição de modelo sustentável é o setor privado. E todos os setores organizados dentro do setor privado já estão diretamente participando com propostas, inclusive no desenvolvimento daquilo que eles estão chamando de metas de desenvolvimento sustentável.
Outro detalhe que é fundamental é que nesse documento, que é um documento que tenta articular o pilar social, o pilar econômico e ambiental, ou seja, são três dimensões importantes de estarem aí articuladas, eles estão querendo retirar tudo aquilo que se refere e se afirma pelos parâmetros dos direitos humanos dentro dos direitos econômicos, sociais e culturais, que foram tratados em convenções que todos os países, exceto os Estados Unidos, firmaram.
Esses direitos obrigam os estados nacionais a serem os efetivadores das ações, portanto eles têm que garantir o máximo de recursos disponíveis, de forma progressiva e sem discriminação, para a efetivação desses direitos. No momento em que você tira esses direitos, você diz assim, “muito bem. Vamos universalizar a energia, vamos universalizar acesso a água e tal”. Quem é que vai fazer isso? Os governos não estão presentes, estão em crise, não têm dinheiro. É o setor privado.
Seria uma privatização dos órgãos internacionais de regulação e gestão?
Quando eles colocam uma proposta de que o setor privado é prioridade e de que os direitos serão retirados, você está dando chance e abrindo as portas para que as soluções sejam dadas “business as usual”, quer dizer, dentro dos padrões de negócios que são usados comumente e que já ganharam os governos, compraram os governos e agora estão comprando as Nações Unidas.
Isso, nós da Cúpula dos Povos somos absolutamente contra. Nossa vida não está à venda. Nossa natureza não está à venda. O raciocínio não pode ser esse, o raciocínio tem que ser “os estados têm obrigações, e eles têm que ser mediadores e têm que responder aos interesses públicos dentro de processos democráticos de participação em que todos e todas sejam beneficiados”.
Não é isso que eles estão fazendo. Por exemplo, existe uma proposta de um rascunho dentro das negociações para a Rio + 20 que está definindo quais serão essas tais metas de desenvolvimento sustentável que vão substituir as tais metas do milênio, que já foram uma redução de toda uma série de debates no campo dos direitos.
Então eles estão dizendo assim; “ah, em 2030 nós vamos dobrar o uso de energia renovável”. É tudo sempre em 2030! Ora, o uso de energia renovável no mundo não chega a 4% da energia utilizada por todas as populações do planeta. Dobrar significa 8%. É nada do ponto de vista de soluções concretas, rápidas, de redução do padrão de uso energético da matriz energética baseada em recursos naturais.
Os prazos são menores?
Nós estamos esgotados! A solução tem que ser aqui e agora, “era para ontem”, não é em 2030 você chegar a 50% de um percentual que é insignificante em relação ao tamanho do problema. Essas coisas todas estão lá nos documentos, estão em jogo e estão muito evidenciadas.
Há espaço para sermos otimistas sobre essa irreversibilidade da privatização dos recursos naturais? Só como exemplo, há dez anos a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) era dada como certa e hoje está morta e enterrada. Essa “economia verde” emplaca 2022?
Olha, eu acho o seguinte. Vamos ser otimistas. A gente tem que ter a utopia e tem que sonhar, mas o otimismo para mim está ligado a uma luta consciente, concreta e pragmática que a gente tem que fazer hoje e agora na nossa vida. A gente tem que se informar e a gente tem que mobilizar.
A Rio+20 vai ser um momento fundamental de mobilizar a população, de vir às ruas, de expressar posições às coisas que estão acontecendo, como por exemplo a privatização das Nações Unidas. Ou, por exemplo, não reconhecer a importância de uma outra institucionalidade internacional que de fato lide com esses três pilares, e que o econômico se submeta às necessidades e a dignidade de vida das populações.
O otimismo vem da minha esperança que a população mundial e a população do Rio de Janeiro, a população do Brasil, acorde para a importância de olhar para esse evento que parece ser mais um “eventozinho no Rio”, mas que não é, é um dos eventos mais importantes que definirão, e aí vem um outro otimismo, que eu acho que é aonde a gente pode influenciar a partir da nossa mobilização, a agenda futura dos próximos dez anos.
Quer dizer, como é que a gente vai, primeiro, impedir que esse acordo entre governos e setor privado se realize. E como é que a gente vai dizer “não, não, não. Reconhecemos a necessidade de um setor produtivo, mas que setor produtivo nós queremos? Que estado nós queremos?”. Como nós vamos nos mover para de fato fazer uma agenda futura que responda aos direitos, necessidades, qualidade de vida, e justiça ambiental, social e econômica que as populações têm?
Porque, veja bem, fazer mensuração de mudanças dos estados, dos países, caminhando para um modelo de desenvolvimento sustentável, tudo bem, todo mundo é favorável a isso. Só que, por favor, quem foi responsável historicamente pelo padrão desagregador, predador, que tem no mundo, não fomos nós. Participamos, proporcionalmente, com parcelas ínfimas se você comparar com o que é os EUA do ponto de vista de consumo de energia no mundo e na emissão de gases de efeito estufa etc.
Então, se a gente não fizer uma “metas de desenvolvimento sustentável” que seja para os países ricos, porque eles têm que mudar o padrão de produção e consumo, e obviamente nós também, com responsabilidades diferenciadas, não começaremos a avançar.
Há caminhos para se chegar a essa proposta de responsabilidades diferenciadas?
Aí o Princípio do Rio (documento aprovado na conferência ambiental das Nações Unidas em 1992 listando 27 princípios que reforçam a soberania dos estados nacionais na gestão dos recursos naturais dentro de uma conjuntura preservacionista, inclusiva e democrática), que foi um princípio aprovado na Rio 92, é fundamental, é estrutural, é um eixo que orienta o quê deve ser esse documento. Se esse documento retira isso, por exemplo, você vai estar destruindo a possibilidade de uma agenda que vai mudar efetivamente o padrão de produção e consumo.
O meu olhar positivo e otimista é que a gente consiga influenciar essa agenda, porque nós não vamos resolver isso aqui e agora no Rio de Janeiro, mas sim determinar um processo global, porque aí sim, essas coisas vão mudar, essas coisas vão vir à tona, a consciência pública vai emergir e buscar um novo caminho planetário para os nossos desafios do momento.