Nota pública Cobertura Universal de Saúde

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde  (AMPASA) e a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) questionam a consistência e a coerência da adoção da “Estratégia para Cobertura Universal de Saúde” e, ao mesmo tempo, apoiam a defesa dos sistemas públicos, garantindo a universalidade, equidade, integralidade e participação social como pilares deste sistema nos países membros da OPAS.

1. Considerando que o documento “Estratégia para Cobertura Universal de Saúde” apresenta um conceito restrito de universalidade e de equidade, uma vez que pressupõe o funcionamento de um sistema onde predomina o mecanismo da compra e venda de serviços de saúde;

2. Considerando os limites da proposta da Cobertura Universal de Saúde (CUS) por condicionar desproporcionalmente seu avanço à melhoria dos determinantes sociais em saúde, que estão fora do raio de ação das políticas de atenção médica;

3. Considerando os obstáculos políticos, técnicos e operacionais para a unificação dos fundos financeiros e para o estabelecimento de subsídios cruzados solidários nos países da região, pré-condições básicas para a sua lógica de funcionamento;

4. Considerando a escassez de indicadores robustos para determinar as necessidades de saúde da população e o correspondente nível de utilização dos serviços, tendo em mente a qualidade e a ética no provimento da atenção à saúde;

5. Considerando que as medidas disponíveis para definir, segundo o critério da equidade, a cobertura de serviços relacionada às doenças transmissíveis e não transmissíveis têm como base pesquisas familiares, entre elas, o World Health Survey (2002-2003), defasadas no tempo, no contexto da transição epidemiológica, demográfica, nutricional e tecnológica;

6. Considerando que a proposta não apresenta nenhuma medida concreta para reduzir os tempos de espera, variável estratégica para aumentar a capacidade resolutiva do sistema de saúde e o bem-estar social da população, mas que depende de uma ação governamental explícita com essa finalidade;

7. Considerando as experiências inconclusas do modelo colombiano e do modelo mexicano que não garantem integralidade de atenção no tocante à consecução dos objetivos propugnados pela proposta da CUS;

8. Considerando o caso brasileiro, onde podemos observar que o gasto público em saúde é baixo e boa parte dos problemas de gestão decorre, exatamente, de problemas de financiamento do Sistema Único de Saúde, de modo que o subsídio destinado ao mercado de serviços saúde subtrai, em tese, recursos significativos que poderiam melhorar seu acesso e sua qualidade. Esse subsídio é regressivo, reforçando a iniquidade do sistema, piorando a distribuição do gasto público per capita (direto e indireto) para os estratos inferiores e intermediários de renda. Apesar deste desfinanciamento, o SUS é um sistema público que tem sido exitoso na expansão da atenção primária, no controle de doenças crônicas, incidindo na diminuição dos desembolsos diretos dos estratos inferiores de renda (desconcentrador de renda) e na redução do risco de exposição dos gastos catastróficos das famílias (em geral associada à alta complexidade);

9. Considerando ainda a participação do setor privado no modelo de Cobertura Universal: apesar da omissão no atual documento de consulta pública, existe uma continuidade entre a proposta que está em consulta pública pela OPAS e os documentos anteriores da WHO/OPAS/OMS  a respeito da participação do setor privado no modelo proposto de Cobertura Universal à Saúde. Esta omissão levanta questionamentos, especialmente por existir uma clara intenção de ampliar a participação do setor privado, particularmente de seguros nos sistemas públicos, inclusive no SUS. Além disso, num país como o Brasil onde a saúde já é considerada um direito via SUS cujos princípios abrangem universalidade e integralidade, não faz sentido promover a realização de um novo marco regulatório que garanta cobertura universal, isto já está previsto pela Constituição Federal.

Os trechos dos textos que demonstram claramente este objetivo de reforçar a participação do setor privado, com consequente apropriação do fundo público, seguem abaixo:

Do documento WHA 58.33 (Assembleia Mundial de Saúde – 25/05/2005)

(6) aproveitar, quando apropriado, as oportunidades que existem para a colaboração entre os organismos públicos e o setor privado e organizações de financiamento da saúde, sob forte supervisão do governo geral;

(7) compartilhar experiências sobre diferentes métodos de financiamento da saúde, incluindo o desenvolvimento de sistemas de seguros de saúde sociais e regimes privados, públicos e mistos, com especial referência aos mecanismos institucionais que são estabelecidas para atender as principais funções da saúde sistema de financiamento.

Do documento feito em conjunto pela Fundação Rockefeller, Save the Children, UNICEF e World Health Organization: “Universal Health Coverage: a commitment to close the gap (2013). Londres: Save the Children, 2013. Disponível em: http://www.rockefellerfoundation.org/uploads/files/57e8a407-b2fc-4a68-95db-b6da680d8b1f.pdf. Acesso em: 05/04/14.

032 – Em lugar do financiamento privado (pré-pagamento voluntário ou OOPS), dependência de financiamento obrigatório ou público é fundamental para alcançar a equidade de financiamento no modelo de Cobertura Universal. A fim de facilitar o acesso determinado pela necessidade, as receitas públicas devem subsidiar os custos dos cuidados, especialmente para os mais pobres e mais vulneráveis. (Mostrando a proposta de financiamento público para os pobres e mercado para os demais);

034 – […] doadores podem ter um papel particularmente importante no sentido de facilitar o aumento do investimento público em saúde. (o setor privado sendo chamado de doadores – no sentido do retorno da caridade em detrimento do direito).

Do documento CE154/12

35- Fazer da regulação um instrumento eficaz, que possa garantir o acesso e a qualidade da atenção dos serviços de saúde; treinamento, distribuição e conduta apropriada dos recursos humanos; geração e alocação de recursos financeiros para promover a equidade e o acesso, bem como garantir a proteção financeira; adoção de tecnologias que beneficiem as pessoas; e participação de todos os setores, inclusive do setor privado, no avanço rumo à cobertura universal de saúde (19).

Tendo em vista essas conclusões, nossa recomendação toma o reconhecimento internacional do desempenho do Sistema Universal de Saúde Brasileiro (SUS) como estratégia consequente para garantir o direito universal à saúde com potência real para a superação das iniquidades e desigualdades.