Nota: Farmácia Popular e o acesso público a medicamentos

O Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB) se destacou como maior provedor de medicamentos para doenças crônicas como asma, diabetes e hipertensão nos anos recentes. O PFPB é um segmento das ações de Atenção Básica coordenada pelo Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde para prover atualmente 33 medicamentos. Apesar disso, o orçamento saiu de 300 milhões em 2010 e foi multiplicado por 10 em apenas sete anos. Contrastando com o incentivo à cadeia privada, foi congelado o orçamento para aquisição de medicamentos básicos adquiridos e entregues diretamente e sem copagamento por estabelecimentos públicos de saúde ao cidadão, representando um público alvo de 200 milhões de brasileiros, sendo 150 milhões usuários exclusivos do SUS.

 

Muitos empresários e políticos se intitulam pais do Programa Farmácia Popular do Brasil e são os principais defensores desse modelo de entrega de medicamentos. A dispensação em drogarias e farmácias é conveniente ao trabalhador de 40 a 44 horas de jornada de trabalho e ao empregador, uma vez que não há dispensa do serviço para buscar o medicamento de uso crônico nas Unidades Básicas de Saúde, as quais usualmente encerram o expediente em horário comercial e são acessíveis na área de residência, não de trabalho.

 

Assim, o problema do aumento da pressão sanguínea, por exemplo, é reduzido ao controle medicamentoso da dilatação dos vasos sanguíneos, como se fosse uma mera questão fisiológica e não sociocultural. Essa forma de acesso a medicamentos não opera na lógica da integralidade, visto que, ao buscar atendimento na unidade básica, a situação de saúde da população adstrita pode ser valorada como um todo, tanto do conjunto de determinantes sociais das doenças, quanto das doenças manifestadas pelo indivíduo.

 

O papel comercial da drogaria, embora seja também estabelecimento de saúde, impede que ultrapasse seu dever legal de dispensar medicamentos e deles cuidar. Em contraste, uma unidade de saúde tem por princípio aplicar uma visão clínica mais ampla dos usuários. Em meio a compra de medicamentos, fica a questão logística, como garantir acesso ambulatorial a medicamentos de forma universal e gratuita em todo o território em horário ampliado e próximo da residência. E ao mesmo tempo, como fazer o monitoramento da medicamentalização da sociedade?

 

O programa apresentou grande atratividade nos primeiros anos visto que o valor repassado pelo governo era bastante superior ao valor de mercado para vários produtos. Ao longo dos anos, não houve aumento do Valor de Referência, apenas cortes e manutenções. Alguns produtos, como a metformina, eram fornecidos, na média, com prejuízo para o mercado. Ainda assim, atenolol e losartana figuravam com grandes margens de lucro.

 

A mensagem da indústria para os usuários do SUS foi dada. Nós vamos cortar o fornecimento de medicamentos. A mensagem da gestão do MS foi nós cortamos o preço que pagamos porque vamos economizar. A mensagem que ouvimos foi: foi reduzida a verba do Programa para cumprir a emenda Constitucional 95 que retira dinheiro da saúde por vinte anos.

 

Assim, cabe avaliar os interesses em jogo. A indústria e o varejo alegam que, repetindo-se o consumo de 2017 em 2018, cerca de 700 milhões de reais não serão repassados ao mercado. O Governo, devido à Emenda Constitucional que congela os gastos por 20 anos não pode aumentar os repasses à indústria e chama de ‘economia’ o possível desfecho. Ainda, do ponto de vista da racionalidade dos medicamentos, não sabe-se se o excesso de lucro motivou a venda de determinados produtos no lugar de outros mais indicados e não disponibilizados no programa, a exemplo da clortalidona que poderia substituir a losartana em diversos casos.

 

Para o governo, Valores de Referência acima do mercado significa dinheiro desperdiçado com programa social. Para o controle social, esse dinheiro deveria ir para a Atenção Básica Pública, conforme proposta aprovada na Plenária da Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em dezembro de 2015. Para a rede privada, Valores de Referência abaixo do mercado podem tornar o programa pouco atrativo. Sem o debate democrático, será prejudicado o acesso aos trinta e três produtos de muitas pessoas que não tem dinheiro para pagar pelo medicamento nem tempo ou condições de ir buscá-los em Unidades Básicas de Saúde, ou pior, nem esta possibilidade caso o município tenha optado por não fornecer ao deixar a cargo da drogaria local.

 

Verifica-se que a Política Nacional de Medicamentos, atualmente está alinhada com proposta 4 do “livro branco” da Associação Nacional de Hospitais Privados  (Anahp): “Fomentar a inovação científica e tecnológica em saúde, destacando a iniciativa de desenvolver incentivos fiscais e de crédito para pesquisa e a inovação em saúde; eliminar as barreiras regulatórias desnecessárias e a lentidão na aprovação de projetos de pesquisas e reduzir as normas e resoluções existentes e estabelecer um marco legal único e comum que incentive a competividade”.  Ou seja, o foco da proposta está na ampliação dos lucros do setor privado e não na ampliação do acesso integral à saúde. Ademais, a Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), por exemplo, reforça o discurso privatizante de que sólida parceria entre a indústria, distribuidoras e o varejo de medicamentos, de um lado, e o Governo, do outro, está fundamentada pelo “fracasso” do Governo em manter um sistema próprio de distribuição de medicamentos em 5.600 municípios brasileiros.”.

 

Nessa linha o Programa Farmácia Popular do Brasil pode seguir rumos cada vez mais privatizantes e desconectados das redes de atenção integral à saúde. A população deve ser consultada quanto ao modelo de tratamento desejado. Se buscar um medicamento em uma unidade básica é inconveniente, ou mesmo inexistente, o melhor modelo seria bancar os elevados encargos logísticos e de publicidade da rede privada, o qual possui maior capilaridade ao situar-se em centros de grande concentração de pessoas? Ainda, o que fazer com os mais de mil municípios sem o programa? Deve-se aumentar o valor de referência para atrair o mercado para estes locais? O valor ‘economizado’ será repassado para a rede pública? O controle social não deve aceitar nenhum centavo a menos para o SUS. Especialmente, o SUS público e gratuito e para todos!

 

As políticas sociais, e especificamente a Política Nacional de Assistência Farmacêutica está ameaçada desde que entrou em vigor novo regime fiscal, através da Emenda Constitucional nº 95, que estabelece um congelamento de gastos em políticas sociais, como saúde e educação por 20 anos. Com a limitação dos orçamentos públicos, o setor privado terá mais demanda, e a “oportunidade” de ter intervenção do Estado de encher ainda mais os bolsos do sistema suplementar de saúde.

 

Portanto, é preciso medir o quanto a Assistência Farmacêutica no SUS vai piorar no tempo com essa emenda. Se, de um lado, o acesso a medicamentos é fundamental na garantia do direito constitucional à saúde, por outro, tornou-se motivo de preocupação devido à dificuldade para sua garantia. As causas para essa dificuldade são diversas, desde a falta de pessoal qualificado para a gestão da assistência farmacêutica até limitações financeiras, mudanças de mercado e capacidade de negociação dos governos.