Novo Arcabouço Fiscal e Financiamento Federal do SUS

Em texto publicado originalmente no portal Domingueiras, Francisco R. Funcia (1), Elida Graziane Pinto (2), Lenir Santos (3) e Isabela Soares Santos (4) escrevem sobre o novo Arcabouço Fiscal, proposto pelo governo Lula para substituir o Teto de Gastos. Os autores apontam as mudanças feitas pela Câmara dos Deputados no texto enviado pelo governo federal, como elas afetam a capacidade de o governo mudar o quadro de subfinanciamento crônico da Saúde, e o que senadores podem fazer para reverter essas medidas. No final de maio, Funcia participou de uma Cebes Debate na qual detalhou um pouco mais esse cenário.

A Câmara dos Deputados, em 24 de maio de 2023, aprovou o texto substitutivo do Relator do Projeto de Lei Complementar 93/2023 (PLP 93) sobre o Regime Fiscal Sustentável (RFS), (anteriormente denominado Novo Arcabouço Fiscal). O texto segue para análise e votação do Senado Federal, que poderá mantê-lo ou alterá-lo e caso seja alterado, deverá retornar à Câmara dos Deputados para nova apreciação.

Neste artigo, avaliamos e refletimos sobre o texto substitutivo e seus possíveis impactos para o financiamento federal do SUS para esclarecer a sociedade sobre a necessidade de sua mobilização em defesa da saúde, educação e demais direitos sociais.

Importante, como abordagem preliminar, destacar o contexto político da tramitação do PLP 93, que substituirá a regra anterior da Emenda Constitucional (EC) 95, de 2016, conhecida como ‘teto de gasto federal’, que asfixiou e gerou perdas bilionárias para o orçamento federal da saúde. Vejamos:

  • a) governo tomou posse há menos de 6 meses, após a vitória eleitoral em uma sociedade dividida politicamente, enfrentando, logo nos primeiros dias, uma tentativa de golpe de Estado, influenciado por forças políticas derrotadas nas eleições presidenciais de 2023;
  • b) a maioria dos deputados e senadores, eleita para a legislatura de 2023-2026, tem perfil conservador; e
  • c) a direção do Banco Central (instituição que goza de autonomia, resiste imotivadamente a reduzir a taxa de juros, de modo incompatível com o cenário favorável da estabilidade monetária e as ações concretas de compromissos do governo federal com a responsabilidade fiscal, o que tem levado a um desentendimento público entre responsabilidades políticas sociais e econômicas, voltadas para desenvolvimento inclusivo e sustentável. Sem se esquecer so risco de conflito de interesses na captação de expectativas inflacionárias apenas junto a cerca de 140 instituições financeiras,

Esse contexto dificultou as primeiras tentativas governamentais de promover reformas emergenciais para enfrentar o cenário estrutural e financeiro de crise herdado do governo anterior, sendo essa uma referência inicial importante para entender a desconfiguração promovida pelo relator do projeto de lei complementar do regime fiscal sustentável, que desconsiderou a responsabilidade social dos Poderes Executivo e Legislativo no enfrentamento das desigualdades que sangram a população brasileira.

O texto substitutivo sob análise, desconfigurou a redação original encaminhada pelo governo federal: no caso do financiamento do SUS e da educação, as despesas com o piso da enfermagem e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) deixaram de ser consideradas como exceção à regra dos limites de crescimento das despesas (70% das receitas primárias condicionadas à banda de crescimento entre 0,6% e 2,5% ao ano).

No caso do financiamento federal do SUS, isto significa dizer que o piso da saúde de 15% da Receita Corrente da EC 86/2015, se transformará em teto, pois parte da margem da expansão das despesas será tomada pelos pisos da saúde e da educação o que inviabilizará qualquer possibilidade de ampliação efetiva do financiamento do SUS.

Ampliação essa absolutamente necessária para a garantia do direito constitucional da saúde, subfinanciado há 34 anos e gravemente desfinanciado nos últimos anos, até mesmo porque deve-se compreender que investimento em saúde é despesa que contribui para a melhoria das condições de vidas das pessoas, ou seja, evita risco de doença, elevando o nível de desenvolvimento do país. Além do mais, a saúde das pessoas sofreu forte abalo em razão da Covid-19 que se abateu sobre o mundo nesses últimos anos.

É oportuno alertar que a regra dos 15% da Receita Corrente Líquida já havia sido avaliada como insuficiente para o financiamento do SUS desde a aprovação da EC 86, e com a vigência da EC 95/2016, quando a regra da EC 86/2015 foi suspensa, houve uma retirada de mais de R$ 70 bilhões do financiamento federal do SUS no período de 2018-2022. Se eram insuficientes os 15%, com o teto de gasto da EC 95 essa insuficiência se agravou a ponto de haver perdas concretas de recursos na saúde.

Essa situação inviabiliza qualquer expectativa positiva da população brasileira para com a saúde dado que o texto substitutivo, aprovado pela Câmara dos Deputados, a ser apreciado pelo Senado Federal, não permite ampliar o financiamento do SUS além do valor de seu piso (recursos mínimos), nem repor as perdas dos últimos anos, o que implica na manutenção do status de subfinanciamento, afetando ainda mais a saúde do povo brasileiro que sofre as consequências da pandemia da Covid 19, que reprimiu a demanda e deixou sequelas na saúde de muitos, ainda não totalmente conhecidas, diagnosticadas e dimensionadas.

Sempre é bom alertar: o SUS custa em torno de R$ 4,00 per capita por dia (somando-se os recursos da União, Estados e Municípios) e cerca de 4,0% do PIB (muito abaixo da cifra em torno de 7,0% e 8,0% como ocorre na maioria dos países desenvolvidos), sendo que o gasto público em saúde representa menos da metade do gasto total em saúde (público e privado), situação inversa ao cenário internacional, cuja aplicação governamental em saúde representa gira em torno de 70% do total do gasto-saúde.

Nessa perspectiva e no curto prazo, o Senado Federal poderia promover algumas alterações no PLP 93/2023 aprovado pela Câmara dos Deputados:

  • a) que as emendas parlamentares individuais impositivas computadas no piso federal em ações e serviços públicos de saúde, calculadas com base na regra da EC 86/2015 (1% da Receita Corrente Líquida, conforme art. 166, §9º da CF/1988), sejam consideradas como exceção ao limite da despesa do regime fiscal sustentável (RFS), (observando-se, obrigatoriamente, o plano de saúde do ente federativo recebedor), para fins de medida compensatória dos impactos da inibição da arrecadação de ICMS e IPI ocorrida no ano passado e em consonância à Emenda 128/2022 e ao art. 14 da Lei Complementar 194/2022;
  • b) que as despesas com o piso da enfermagem e com o Fundeb, que estavam excepcionalizadas no limite da despesa, conforme redação original do governo, voltem a ser excetuadas. Isso significa a leitura teleológica dos incisos I e VI do §6º do art. 107 do ADCT, (exceções ao teto que ainda vigoram) que integre às Emendas 108 e 127. A revogação do teto não pode ignorar o ordenamento constitucional vigente, seja em relação ao alcance do piso da enfermagem (Emenda 127/2022), seja em relação à complementação federal ao Fundeb (Emenda 108/2020). Não é dado à lei complementar mitigar o alcance de dispositivos constitucionais que determinam a responsabilidade solidária pelo custeio dos principais direitos sociais, porque tal opção infraconstitucional comprometeria sua garantia de financiamento intertemporal, ainda que de forma implícita.

Para que isso ocorra, é fundamental que as instituições, entidades da sociedade civil e movimentos sociais em defesa do SUS, da educação e das demais áreas sociais, em defesa da vida do povo brasileiro, estejam mobilizadas para sensibilizar os Senadores para essas mudanças.

É preciso que o Senado Federal atente para as graves consequências de se transformar piso em teto, impedindo o crescimento do orçamento federal para corrigir as graves iniquidades sanitárias, impostas pelo teto de gasto da EC 95, e o subfinanciamento da saúde, aumentando as iniquidades sociais.

Somos todos responsáveis pelos destinos da comunidade e, para que isso seja posto em prática, a Casa Legislativa, Casa do Povo, precisa se comprometer com o adequado financiamento da saúde como elemento relevante para a garantia do direito da saúde. Proclamar direitos sociais descolados da responsabilidade para com o seu financiamento, é promessa inconsequente.

Autores:

  1. Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS), Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e Consultor Técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde.
  2. Elida Graziane Pinto é Livre-docente em Direito Financeiro na USP, Doutora em Direito Administrativo pela UFMG, com estudos pós-doutorais em Administração pela FGV-RJ, Professora da FGV-SP e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
  3. Lenir Santos é advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento de Saúde Pública da Unicamp, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, Idisa.
  4. Isabela Soares Santos é socióloga, doutora em saude publica (FIOCRUZ), pesquisadora na Ensp/FIOCRUZ, Vice-presidenta da ABrES e coordena a Comissão de Políticas Públicas e Gestão de Saúde da ABRASCO.

Acesse o texto publicado originalmente no portal Domingueira através desse link.

Veja o Cebes Debate com Francisco Funcia no link ou a seguir: