O abandono da pediatria

Correio Braziliense
A peregrinação de Cláudia* por emergências — particulares e públicas — completa 18 dias hoje. Desde 22 de dezembro, o filho dela sente dores pelo corpo, febre, vômito e dificuldade para respirar. A variedade de sintomas do garoto de 2 anos é tão vasta quanto a natureza dos diagnósticos que a servidora pública ouviu dos especialistas. “Já me falaram que era infecção de garganta, pneumonia e, claro, virose. Não sei mais em quem acreditar”, conta. A via-crúcis que a mulher percorre é um retrato dos percalços por que passa a especialidade, que deixa de ser economicamente interessante para clínicas e hospitais privados e sofre com sucateamento e falta de profissionais na rede.

O problema começou há quase duas décadas, quando áreas como a cardiologia ganharam destaque pela possibilidade de procedimentos mais complexos e, consequentemente, mais rentáveis. ” A pediatria é uma especialidade da medicina primária, em que o principal é a consulta e o acompanhamento. Não há necessariamente a prescrição de exames. O importante é a orientação dos pais, a conversa”, explica uma das diretoras da Sociedade Brasileira de Pediatria no DF (SPB-DF), Carmen Lívia Faria da Silva Martins.

Atenção e cuidado são quesitos de que Cláudia sentiu falta nas unidades de saúde que procurou. Ao ver que o filho piorava, ela entrou em contato com a profissional que o acompanha desde os primeiros dias de vida. “Ela o avaliou e disse que era pneumonia e, por isso, eu deveria interná-lo imediatamente”, conta. A moradora de Sobradinho levou a criança à emergência de um hospital no fim da Asa Norte, onde teve o procedimento negado. “No hospital particular, se recusaram a interná-lo, argumentando que ele só tinha uma infecção de garganta. Nós temos convênio de saúde, mas parece que não adianta nada, porque o local parece não querer que ele ocupe o leito”, continua.

A impressão da mulher não foge a uma realidade em que a opção mais rentável é o fechamento de prontoatendimentos do setor privado. “Os administradores preferem fechar um leito infantil para ganhar um onde possa realizar mais intervenções no paciente”, compara a diretora do Sindicato dos Médicos do DF, Adriana Graziano. Isso se explica também pelo fato de que o valor pago pelas operadoras de saúde suplementar aos profissionais não cobre os custos com a manutenção do setor. Sem assistência na rede privada, Cláudia procurou as unidades públicas. “Fui ao Hospital Regional de Sobradinho, e o médico disse que eu não precisaria me preocupar, pois meu filho só tinha uma virose. Se era só uma virose, por que a febre não cede há sete dias? Ele só piora e já perdeu 1kg por não conseguir se alimentar”, questiona.

Sobrecarga

A última esperança de Cláudia foi procurar a emergência do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). “Chegamos aqui às 10h30 e ele só fez uma ecografia abdominal. São 16h e espero que, aqui, descubram o que meu filho tem”, suspira. O Hmib faz, hoje, cerca de 200 atendimentos na Pediatria e 74 no Centro Obstétrico. São também 19 partos diários. Assim como a moradora de Sobradinho, a unidade de saúde é o ponto final de muitos pacientes que não conseguem solução para as enfermidades nas cidades em que moram, como Silvia Mota Sousa, 30 anos. A dona de casa vive em Luziânia (GO) e trouxe a filha Luisa Sousa Ferreira, 1 ano e 8 meses, para ser avaliada pela equipe do hospital. “Lá (em Luziânia) não tem atendimento, tivemos que vir para cá. Só venho ao Hmib em último caso”, afirma Silvia.

A absorção da demanda do Entorno dificulta a operação não só na unidade da Asa Sul, mas também em outras regiões, como os hospitais regionais de Santa Maria (HRSM) e do Gama (HRG), de acordo com a Secretaria de Saúde do DF. “A demanda do Entorno tem aumentado muito, o que acaba lotando as emergências. Por isso, a SES/DF tem investido cada vez mais na atenção primária e em recursos humanos”, informa a pasta, por meio de nota. Ainda assim, o contingente para atendimento nas referidas unidades é bastante reduzido. Enquanto, no Hmib, há três pediatras e quatro obstetras, no HRG são dois pediatras e cinco ginecologistas por turno. Já no HRSM, há dois pediatras e quatro ginecologistas.

*Nome fictício a pedido da entrevistada