“O Brasil precisa dobrar gasto em saúde”, diz especialista
Natalia Cuminale
Foto: Virginia Damas
Há um consenso em torno da necessidade de o combalido sistema público de saúde brasileiro receber mais recursos para deixar a UTI. Mas quanto? Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ligada à Fundação Oswaldo Cruz, apresenta a sua conta: “A princípio, precisamos dobrar os gastos”. Além de mais dinheiro, o Sistema Único de Saúde precisa de mais gestão e deverá se defrontar com um novo desafio nos próximos anos. “O SUS vai ter que responder às mudanças sociais. Com a melhoria da situação econômica de uma parcela da sociedade, precisará atender a expectativas da nova classe média baixa.” Eis mais um desafio para o presidente que assumirá o posto em 2011. Leia a seguir os principais trechos da entrevista com a especialista.
Qual o maior desafio que o próximo presidente da República deverá enfrentar na área de saúde?
O grande desafio para o novo governo será construir de fato um sistema público universal de saúde, de qualidade, como é o pretendido pelo SUS. O nosso segue um modelo inglês, sem contribuição prévia, financiado pelos recursos fiscais. O primeiro grande desafio é ampliar os recursos. Nos países europeus, os valores destinados à saúde chegam a 8% do PIB. Os gastos brasileiros são, em média, de 3,6%. Considerando-se a riqueza nacional, é muito pouco. A princípio, precisamos dobrar os gastos com saúde pública.
Por que o Brasil investe pouco?
Temos limites nas nossas políticas econômicas, além de disputas sociais e políticas que atrapalham a discussão sobre a quantidade de recursos. Sabemos que um SUS de qualidade e com oferta universal de serviços aumentaria a disposição da classe média em contribuir com o pagamento de impostos. Atualmente, há uma baixa disposição porque a classe média não utiliza o serviço e porque os serviços não são completamente universalizados.
O SUS corre o risco de se tornar inviável? O que precisa ser feito para que não ocorra um colapso no sistema público?
Não acredito que haja risco iminente de colapso do SUS. Mas as escolhas que fizermos a partir de agora podem levar à construção de diferentes tipos de sistema. Por exemplo: uma política mais direcionada a parcelas mais pobres da população ou um sistema de má qualidade, sem acesso universal. O SUS vai ter que responder às mudanças sociais. Com a melhoria da situação econômica de uma parcela da sociedade, precisará atender a expectativas da nova classe média baixa.
Além de aumentar o investimento, o que mais é importante?
Outro desafio é estabelecer prioridades para o modelo assistencial. Atualmente, a cobertura de atenção básica, por meio do programa Saúde da Família, alcança apenas 50% da população. É preciso que haja uma ampliação sustentada, de modo a atingir 80% da população. O ideal é que cada pessoa tivesse acesso regular ao serviço, como acontece na Espanha ou na Inglaterra. O problema é que, mesmo nos municípios onde o acesso foi ampliado, ainda há um gargalo importante na oferta de serviços de média e alta complexidade. Temos prazos excessivamente longos para atendimentos. Até pouco tempo atrás, em algumas cidades, não havia sequer registros da quantidade de pessoas na fila e o tempo de espera. Já estamos em um momento avançado no SUS, em que é necessário dar à população garantias explícitas de que os serviços irão funcionar. Além disso, o Brasil precisa intensificar a formação de médicos especializados em medicina de família e comunidade.
Isso não ocorre?
Existem algumas iniciativas. Porém, o número de médicos especializados nessas áreas é muito pequeno. O Ministério da Saúde não regula de fato a formação de especialistas em medicina. É diferente de outros países. Na Espanha, as vagas de residência para uma ou outra especialidade são definidas a partir da necessidade do sistema público de saúde. Embora no nosso país tenha havido algumas estratégias de aproximação, não é o Ministério da Saúde que trata desse assunto.
Entre as promessas dos candidatos à Presidência, estão a criação de ambulatórios de medicina especializada, a realização de mutirões e o acesso universal a remédios para diabetes e hipertensão. É disso que o Brasil precisa?
Há um problema em relação à oferta de serviços especializados. No entanto, o investimento nessa área não pode interferir na ampliação da atenção primária. Já iniciativas como mutirões podem responder a situações emergenciais, reduzindo filas de espera por cirurgias eletivas. Mas os mutirões não podem ser a política regular de governo: quando eles chegarem ao fim, as filas voltarão a aparecer. Sobre o acesso universal a remédios, já existem políticas de distribuição dos medicamentos para doenças crônicas. Essa é uma política importante de longa duração.
Fonte: Veja.com