O Caso Shell e o desdém empresarial sobre o poder do estado

Crédito da foto: Antonio Cruz/ABr

O médico sanitarista, epidemiologista e professor associado da FCM/UNICAMP, Heleno Corrêa, analisa audiência de conciliação entre os ex-trabalhadores SHELL de Paulínia e os representantes das empresas do grupo que iniciou e sucedeu a fabricação de agrotóxicos para a “revolução verde” na América Latina. Na ocasião, Corrêa identifica três mensagens políticas principais do processo: “a vitória dos trabalhadores no reconhecimento do direito ao seguro vitalício para os ‘habilitados’; o escárnio empresarial sobre o poder do estado; e o eventual sinal internacional de liberação para o vandalismo tecnológico humano e ambiental”.

Por Heleno R. Corrêa Filho

Ocorreu, em Brasília, no Tribunal Superior do Trabalho do Brasil (TST), a audiência de “conciliação” entre os ex-trabalhadores SHELL de Paulínia e os representantes das empresas do grupo que iniciou e sucedeu a fabricação de agrotóxicos para a “revolução verde” na América Latina (Shell-Cyanamid-Basf).(1, 2)

Ressalte-se a surpresa para os que não entendem do direito ao constatar que as discussões trazidas pelas empresas retomam aspectos de fatos e evidências julgados e considerados pacíficos e reconhecidos em duas instâncias anteriores, uma monocrática e outra de colegiado de juízes.

É uma volta à estaca zero impondo ao TST tarefas de juizado de primeira instância. Aos olhos do cidadão comum isso representa a anulação do trabalho judicial anterior e a imposição de uma tarefa incompatível com o nível de jurisdição do Tribunal Superior do Brasil nessa matéria.

A sessão foi presidida pelo Presidente do TST, o Ministro João Oreste Dalazen. Ele é também o juiz da causa e manifestou desejo de terminar a análise antes de encerrar o mandato de presidente do TST em março de 2013.
Da parte dos trabalhadores estiveram presentes os advogados sindicais, uma comitiva de trabalhadores e ex-trabalhadores ligados à Associação dos Trabalhadores Expostos às Substâncias Químicas (ATESQ), bem como representantes sindicais dos Químicos Unificados de Campinas, Osasco, Vinhedo e Região sob a liderança do dirigente sindical Arlei Medeiros.(3)

A causa que vem em recurso pelas empresas para a terceira instância da justiça trabalhista brasileira teve origem na exposição a que submeteu trabalhadores, população e ambiente ao redor da unidade de fabricação e formulação de organoclorados, organofosforados, piretróides e outros produtos em suas várias divisões à beira do Rio Atibaia em Paulínia. Uma de suas divisões chamou-se OPALA – “Organofosforados Para a América Latina”. Lá foram realizados entre 1976 e 1995 a fabricação e formulação dos organoclorados banidos em 1975 das fábricas do Texas.

Esses produtos são chamados desreguladores endócrinos. Atingem todos os animais destruindo e bloqueando hormônios e enzimas que metabolizam a energia da vida. Em seres humanos desrregulam as glândulas de secreção interna como tireoide, paratireoide, ovários, testículos, suprarrenais, pâncreas e hipófise e repercutem sobre o metabolismo e a imunidade corporal causando consequências tardias que nenhum manual de Medicina do Trabalho e de Toxicologia reconhecerá como ligado diretamente à exposição. (4)

As doenças gerais como vários tipos de câncer, doenças neurológicas e infecções podem ser agravadas pela falta de imunidade ou fraturas de ossos podem estar ligadas à incapacidade de regular o metabolismo do cálcio serão registradas como doenças comuns. É para essa armadilha que os médicos e advogados contratados pelas empresas querem arrastar os ex-trabalhadores e seus descendentes. Desejam discutir a “causa” de cada adoecimento, um a um, para depois muito depois decidir se pagam ou não a assistência à saúde. Não importa que ao final da discussão o ex-trabalhador ou um filho estejam incapacitados ou mortos. Importa que a compensação não tenha sido paga.(5)

Hoje não vieram a Brasília com seus toxicologistas patronais contratados para pedir a discussão eterna sobre a causa das doenças ignorando a multicausalidade, as exposições múltiplas não registradas e sinérgicas que aumentam e agravam as doenças consideradas “comuns”.(6, 7) A tática mudou certamente para não irritar os juízes. Vieram só os advogados da Dallari & Associados com duras propostas de “conciliação” cheia de armadilhas jurídicas denegatórias e protelatórias. Uma conciliação entre um grupo de hipossuficientes, doentes, famílias de trabalhadores já falecidos, que contam com o Ministério Público e com seus advogados contra um grupo de multinacionais poderosas com orçamentos maiores que muitos países.

Os advogados das empresas compareceram com lista que reconhece o direito de seguro saúde vitalício para um terço dos trabalhadores diretos e seus descendentes que já foram habilitados nas instâncias judiciais de primeiro e segundo nível. Isso é uma vitória enorme do grupo organizado de trabalhadores que passam a ter um documento trazido pelas empresas em que são reconhecidos como justos os pagamentos de procedimentos de atenção à saúde determinados por sentenças anteriores.

Junto com a confissão conciliatória vieram várias frases dúbias em meio ao documento induzindo que qualquer “novo trabalhador” que se apresente a partir de agora, ou seja, descoberto além daqueles que já se habilitaram seja submetido a uma junta médica que vai examinar a causalidade e o nexo dos procedimentos com a exposição reconhecida no passado.

Por um lado é uma estrondosa vitória dos trabalhadores. Chegaram hoje ao TST em Brasília com a aceitação jurídica tácita pelos representantes patronais de que a justiça deve ser feita com atendimento vitalício para a saúde dos ex-trabalhadores e seus familiares de primeira geração. Mesmo falando em conciliação do mais forte sobre o mais fraco esse direito já vem reconhecido na ‘proposta empresarial ’ apresentada ao TST.

Por outro lado é um desrespeito daquelas multinacionais face o estado Brasileiro. A ausência da lista completa de todos os ex-trabalhadores diretos e terceirizados que estão vivos bem como seus cônjuges e filhos poderia ser reconstruída caso as empresas entregassem os identificadores individuais e o estado fizesse a busca pelos mecanismos que possui. Sem a lista nunca serão ‘descobertos’ onde estão os dois terços de trabalhadores diretos e mais de uma centena de terceirizados que “não se habilitaram” aos benefícios por terem morrido, migrado, e por não terem como saber que a causa chegou ao TST com essa decisão.

Com os identificadores numéricos de cidadania (Nome Completo; CPF; Título de Eleitor; NIT), dados de filiação e datas de nascimento seria possível identificar nos cadastros da Caixa Econômica Federal, Receita Federal, Instituto Nacional de Seguridade Social, CAGED e outras bases federais todos os que ainda estejam vivos ou inscritos em algum serviço público, social ou banco estatal. Não teríamos chegado a Brasília doze anos depois com um terço dos trabalhadores diretos habilitados e as empresas questionando que nada tem que ver com os terceirizados. A lista conhecida parcial é aquela decorrente da luta de recuperação pelos trabalhadores por meio do Sindicato, da ATESQ e do Ministério Publico Federal do Trabalho.(2)

Uma terceira mensagem que poderá ser erroneamente enviada é que liberou geral no Brasil. Todas as empresas que desejam poluir podem trabalhar com tecnologias sujas e obsoletas sem risco de serem obrigadas a compensar, mitigar, substituir ou pagar danos. Ao final se tudo terminar com o mínimo alarde possível, com pouca ou nenhuma notícia da grande imprensa, se forem trocados os nomes das empresas e razões sociais, estará dado o sinal verde para liberar de forma geral a exposição deliberada de trabalhadores, da população e do ambiente como custo inevitável da produção. A Shell passa no processo a ser chamada pelo seu nome de razão social – RAIZEN. Sem dúvida está sendo eliminado um problema de raiz para a marca aparecer bem na mídia.

Uma quarta consequência técnica e científica ruim poderá ser o reforço da mentalidade retrógrada entre os futuros técnicos de saúde incentivando-os a discutir causalidade sobre indivíduos quando a ciência epidemiológica trabalha sobre coletivos. Esse debate acadêmico vem sendo calado nas universidades mais importantes por meio do estímulo suave do dinheiro e do financiamento de pesquisa para aqueles que favorecem esse pensamento compatível com a época de Paracelsus no século XVI (Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim dizia que “a dose faz o veneno”).(8)

Hoje o conhecimento científico aponta para a nanotecnologia e para efeitos que aumentam quando se encontram partículas nanométricas, doses cada vez menores de toxicantes com penetração intracelular e repercussões genéticas em descendentes de até três gerações. Esse conhecimento foi desenvolvido nos últimos quarenta anos e tem sido deliberadamente ignorado em favor da “toxicologia de resultados”. Nessa ciência do século XVI demonstra-se a impossibilidade de medir a dose e por consequência negam-se os efeitos. Em termos científicos é a negação da própria ciência tendo como princípio de que aquilo que não se encontra não existe ou é mera ficção. Não se trata de incapacidade do método ou do pesquisador. “Adeus Bóson de Highs!”(9)

O presidente do TST tem sobre seus ombros uma dura missão ao final de seu mandato. Ou concilia ou prolata sentença correndo o risco de enfrentar as consequências sociais e trabalhistas dessa luta que se arrasta pelos tribunais enquanto já morreram mais de cinquenta trabalhadores do grupo inicial da demanda. Muitos dos falecidos morreram por causas raras em idades atípicas.

A probabilidade de que não ocorra a conciliação é pequena, uma vez que foi sinalizada na audiência de maneira didática, austera e mesmo dura, a motivação dos Juízes para que as cláusulas mais ofensivas da ‘proposta de conciliação empresarial’ sejam retiradas. Retirando-se o bode de dentro do barraco pelo menos cerca de trezentos trabalhadores e mais quinhentos familiares já habilitados e na luta receberão uma compensação modesta e justa. É possível também que por consequência da mesma conciliação e contrariando a luta do Ministério Público Federal do Trabalho as multas por danos morais e coletivos sejam muito atenuadas beneficiando as empresas e que seja esse o principal custo social jogado sobre a população e o estado.

Essas são as três mensagens políticas principais do processo na audiência conciliatória de hoje: _ A vitória dos trabalhadores no reconhecimento do direito ao seguro vitalício para os “habilitados”; o escárnio empresarial sobre o poder do estado; e o eventual sinal internacional de liberação para o vandalismo tecnológico humano e ambiental. Elas estarão em discussão até o fim do mês em audiências renovadas diante dos juízes do TST.

Referências:
1.    Rezende JMP. Caso SHELL/CYANAMID/BASF :  Epidemiologia e informação para o resgate de uma precaução negada. [Tese de Doutorado]. Campinas: UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas; 2005. Available from: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000108533
2.    Sabino MO. Reconstrução de coortes: métodos, técnicas e interfaces com a vigilância em saúde do trabalhador [Dissertação de Mestrado]. Campinas – SP,: UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas; 2009. Available from: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000439444 ; http://cutter.unicamp.br/document/?code=000439444.
3.    QUIMICOS UNIFICADOS. No TST, vitória maior é Shell reconhecer publicamente, em juízo, a contaminação. Site Noticias Sindicais [serial on the Internet].DOI:2013; (14/02/2013): Available from: http://www.quimicosunificados.com.br/7836/no-tst-vitoria-maior-e-shell-reconhecer-publicamente-em-juizo-a-contaminacao/.
4.    Diamanti-Kandarakis E, Bourguignon J-P, Giudice LC, Hauser R, Prins GS, Soto AM, et al. Endocrine-Disrupting Chemicals: An Endocrine Society Scientific Statement. Endocr Rev. 2009 June 1, 2009;30(4):293-342.
5.    Hill AB. The environment and disease: Association or causation? Proceedings of the Royal Society of Medicine [serial on the Internet].DOI:Unavailable; 1965; 58(5 May): Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1898525/pdf/procrsmed00196-0010.pdf
6.    Ayres JRdCM. Sobre o risco: paara compreender a epidemiologia. Capistrano Filho D, Merhy EE, Campos GVdS, Bonfim JRdA, editors. São Paulo: HUCITEC – Humanismo, Ciência e Tecnologia; 1997.
7.    Breilh J. Reprodução social e investigação em Saúde Coletiva. In: Czeresnia D, editor. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: HUCITEC – ABRASCO’; 1990. p. 137-65.
8.    Klaassen CD, Amdur MO, Doull J. Cassarett and Doull’s Toxicology: The basic Science of Poisons. 3 ed. Klassen CD, editor. New York: Collier Macmillan Canada, Inc.; 1986.
9.    Levins R. Whose scientific method? Scientific methods for a complex world. New Solutions. [Review on Methods]. 2003;13(3):261-74.