O direito a um futuro

Bem comum, esfera pública e ética: sentido e nexos da universalidade*

Ana Luiza Viana

A oportunidade dessa reflexão, propiciada pelo nosso 2º Congresso de Política, ocorre num momento histórico importante, em que se evidenciam, mais uma vez, limites estruturais significativos do desenvolvimento capitalista: seu caráter despótico, centralizador e coletivista. Um momento que nos impõe resgatar, com Marx, a ideia de que somente uma práxis coletiva, voltada para construção de uma subjetividade livre e criativa que coloque o homem no centro da história, conseguirá cumprir com os anseios libertários reiteradamente prometidos desde o inicio da ascensão da burguesia. (Marx)

As promessas de autodeterminação do individuo, que acompanharam a ascensão da burguesia, esbarram, sempre, no caráter despótico do capitalismo, das leis férreas do capital voltadas a submergir os homens e a política em transações mercantis e financeiras. De um lado os perdedores, porque dependentes da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego; de outro, os ganhadores que, ao acumular capital financeiro, gozam do tempo livre e do consumo de luxo e emergem como prova da soberania do indivíduo-consumidor. (Belluzzo)

O Estado, no capitalismo, é companheiro inseparável da mercantilização geral, pois o sistema jurídico liberal (não confundir com o estado de direito democrático), ele foi construído para permitir a fluidez da circulação da mercadoria e do dinheiro. Liberalismo e mercado atuam sempre no sentido da desregulamentação,da mercantilização / mercadorização; e também da financeirização, como etapa abstrata e concreta do desenvolvimento do capital.

Os últimos 30 anos foram palco desses três processos nos quais o neoliberalismo se assentou: a financeirização, a mercadorização e a desnormatização / desregulamentação.

Vejamos, primeiro, o processo de financeirização. As assimetrias entre o PIB mundial e o capital financeiro se acentuaram sobremaneira até a crise de 2008; tendo este último atingido um valor de 14 vezes do PIB mundial. Isto é o que se negocia dentro e fora das bolsas de valores! É o que dá a base para que a política econômica se transforme em política monetária; para que toda riqueza, toda a economia, se apoie na autonomia do gasto. Gasto que foi, é e será garantido pelo sistema de crédito (temos aí a bancarização da sociedade).

Trata-se de um modelo de base extremamente frágil, centrado na desvalorização do trabalho e no aumento constante no consumo. E, ainda mais: voltado para o consumo supérfluo. Um modelo destinado a gerar bolhas, sobre bolhas. Um modelo não somente instável, mas, sobretudo, insustentável.

Como alertam muitos, a crise capitalista não é mais episódica, mas intrínseca e estrutural; com a supremacia das finanças e sua face de especulação, contra a qual não cabe uma crítica apenas moralista, pois ela é um traço constitutivo do capitalismo desse século – junto com seus pares, como a desregulamentação, inovação financeira e o endividamento.

O segundo elemento é a mercadorização. Aqui temos a generalização da ética da troca. A mercantilização invade todas as esferas da vida humana, os espaços do bem comum. Tudo aquilo que é necessário para reprodução humana (o ar, a água, a órbita celeste, as instituições, a cultura etc.) tornasse mercadoria e mercantilizável; inclusive o que, antes, era impensável e inaceitável se tratar mediante cálculos de lucro.

Essa mercantilização invade instituições, que estiveram resguardadas dos instrumentos de mercado, como as instituições voltadas para geração do conhecimento e pesquisa, os serviços de utilidade pública, o domínio cultural em que repousa nosso patrimônio histórico e a criatividade intelectual. E, mais importante, esse não é um processo marginal, volta-se a mercantilizar, inclusive, o que já havia sido, em algum momento histórico, desmercantilizado.

A justificativa ideológica para esse movimento é a seguinte hipótese:“somente o sistema de preços permite uma eficiente alocação de recursos; pode-se atribuir preço a tudo, e o mercado funcionará como guia ético, uma ética para toda ação humana”.

Claro que esse não é um movimento atípico do capitalismo e no decorrer de sua história. Porém, no momento atual, ele assume uma força persuasiva peculiar. Por quê? Porque esse movimento invade e coloca em risco dois regimes fundamentais, propiciadores da justiça e da igualdade: o regime do trabalho e o da seguridade social.

O trabalho e o direito ao trabalho se desconfiguram pelo incentivo à flexibilização e à precarização das condições e relações de trabalho, desestruturando a sociedade salarial, base do direito ao trabalho,corolário do direito à vida; algo superior, inclusive, ao próprio direito de propriedade!

Esse processo também desconfigura a previdência e a seguridade social (garantidora de pensões, quando do envelhecimento, e auxílio nos movimentos cíclicos de desemprego). Ao pretender extrair do próprio salário o conteúdo e a parcela da previdência.

É a previdência que garante aquele trabalho que ascende no ganho da distribuição funcional da renda, ao não permitir que esse ganho se volte para a garantia de uma renda futura, quando da aposentadoria, e/ou muito menos, na forma de fundo que garante renda nos momentos (cíclicos) de declínio da economia.

A seguridade social é colocada em risco pela mercantilização dos serviços públicos essenciais, com a redução dos serviços ofertados diretamente pelo estado e modificando a forma como esses serviços são ofertados. A privatização, as iniciativas de terceirização e de parcerias público privado geram uma inversão da forma como o conceito de serviço público foi concebido, por mais de um século. Ele foi modelado segundo o grande ensinamento de Max Weber, segundo o qual, um ethos profundo deve ser intrínseco à burocracia pública de alto nível, onde a relação fornecedor/cliente é algo muito diferente das características que tendem a reger a atuais relações de vendedor/pagadores.

A relação fornecedor/cliente, permeada por um ethos público,é o que permite graus de anonimato e de não diferenciação na provisão dos serviços, características essenciais da universalização. Um servidor público exemplar é o segue normas de não privilégios, de não clientelismo, de não burocratismo também (pois se desenvolveram salvaguardas contra a patologia burocrática), de forma a favorecer os princípios e as práticas da igualdade e do universalismo.

O conceito de cidadão é substituído pelo conceito de contribuinte-usuário-consumidor; sendo que estes últimos passam a ser idolatrados. Idolatrados por que escolhem, são “artífices da eficiência”, regem-se pela lógica e pela ética do mercado, e – segundo a ética mercantilista – são garantia de preços justos e de equilíbrio.

Assim, essa figura de contribuinte-usuário-consumidor ganha evidência e é vista preferível, em contraposição ao cidadão “passivo”, que não faz escolhas, que apenas desfruta de bens coletivos e comuns, que “não exerce escolhas e, portanto, não garante a eficiência”.

Nesse contexto, o Estado, por sua vez, “toma ares de mercador”, passando a ofertar bens e serviços que não passaram ainda pelo crivo da escolha democrática e da eficiência social e política. Pior. Esses serviços passam a ser ofertados e administrados por profissionais que não receberam o carimbo da eficiência em concorrências públicas, em detrimento daqueles que cometeram “o pecado” de serem funcionários de carreira, isto é, o “pecado” de se submeterem ao estado democrático, e assumirem o compromisso ético de serem servidores públicos.

O setor público passa a ser fatiado em incontáveis serviços, oferecidos a consumidores diversos, na forma de produtos diferenciados em função de diversas expectativas e culturas de consumo, de diversos grupos sócio demográficos, interesses particulares etc.

Segundo Laura Penachi, a mercadorização estimula enormes gastos em consumo, porque ativa o que a autora chama de desertificação antropológica. Isto se dá quando as pessoas deixam de valorizar as relações sociais como forma de reconhecimento e sociabilidade, e se voltam para relações de aparência. É a alimentação consumista do narcisismo, onde crianças viram adultos, e os adultos viram crianças, pois ambos estão em busca de consumo, em competição cega, ávidos por ter, cheios de inveja um do outro e totalmente infantilizados em suas relações.

Por último, o terceiro elemento do atual período neoliberal.

A desnormatização/desregulamentação são estreitamente correlacionadas, pois há uma intolerância para com as regras, muito visível no trinômio neoliberal: menos regras, menos taxas, menos Estado.

A chamada autorregulação do mercado golpeou, inclusive, o senso de valor presente na norma, na lei, que é substituída pelos contratos privados, que mantêm uma forte aliança com o reducionismo econômico. Quando o contrato bilateral passa a ter força social, instaura-se um individualismo e um privatismo endêmico: o mercado passa a ter força de lei em escala planetária; celebram-se as virtudes da livre escolha e do contrato flexível, supostamente igualitário e emancipador. E oposição, impinge-se ao Estado e à Lei os estigmas da rigidez,da unilateralidade e da coerção.

Aqui se funda o princípio da terceirização, quando o contrato bilateral substitui a ideia de estado terço – no sentido de contrato social, como concebido pelo pensamento clássico, sendo substituído pelo contratualismo, como ideologia e prática ideológica, sem mais corresponder à ideia de uma relação individuo/sociedade/estado como no contrato social.

Mais uma vez, o que pode anular os efeitos negativos dessa tendência é a construção de mecanismo fortes de sustentação da democracia, dos direitos sociais e econômicos, que têm como pedra angular o Estado Social e sua capacidade de gerar autoproteção social, em lugar de mercados autorregulados; conforme enunciado por Karl Polanyi.

O Estado de direito democrático e a autonomia da política são os dois pilares fortes da relação individuo/sociedade/estado. O Estado de direito se baseia no princípio do terço, como mediador das trocas e das relações individuo/sociedade, e das relações bem comum /sociedade, dado que o mercado não deve ser a fonte de geração de regras universais.

A democracia, junto com a noção de esfera pública, como intermediária entre os interesses gerais, públicos e aqueles privados, particulares, atuando a partir de instituições; a noção de bem comum e de bens públicos; e a argumentação racional permite construir vida social, como superação do individualismo negativo, narcisista, consumista e expectador.

A construção do triângulo público-privado-comum (social) necessita mediação institucional, necessita revigorar o que é público, e dar a importância ao estatal.

A necessidade de instituições – que tratam, organizam, fazem mediação, e que não são apenas normas e fins, mas instrumentos e meios, pelos quais as relações sociais são passíveis de negociação e argumentação visando interesses gerais e coletivos, versus demandas corporativas;, enfim tudo aquilo que nos faz distantes do fundamentalismo – pois bem, a necessidade de instituições é o que fundamenta o estado de direito democrático.

Nesse sentido as instituições são bens públicos e a mediação institucional é uma função central da civilização moderna. As instituições são os filtros civilizatórios que estruturam os dois pilares da modernidade: a autonomia da política e o estado de direito.

Em efeito, quando se enfatiza o autogoverno e as virtudes da sociedade civil, não devemos esquecer o risco de refeudalização e da perda da noção do que seja a esfera pública e de sua função de mediação institucional. Enfim, do princípio do terço entre individuo e sociedade.

A vitalidade da esfera pública e da democracia depende não somente da densidade da capacidade associativa, da organização social, mas também da intermediação institucional e de seu grau de maturidade; em resumo, da construção de um espírito público coletivo.

Pois o risco é a dessocialização do individuo e a despolitização da sociedade.

A esfera pública constitui uma variedade de processos institucionais, de discussão, conflitos, de elaboração e de deliberação, de ação sobre os problemas do bem comum, que se expressa em políticas públicas democráticas onde o sujeito-cidadão exprime sua autonomia política, de forma de fazer valer seu pensamento.

Por isso mesmo, como afirma Honneth, a liberdade individual e a pratica pública são, no homem, coisas que andam juntas, expressando a esfera social na dimensão pública da política.

O que podemos então definir como público é bem simples. Público o oposto de privado em todas as suas diversas possibilidades semânticas. Façamos como o fez Ota de Leonardis:

1) Público é o oposto do privado, sinônimo de segredo; o que é público não é segredo, deve ser exposto à visibilidade pública;

2) Público é o oposto do privado, como sinônimo de particular; o que é público é geral, tem validade universal;

3) Público é o oposto do privado, com sentido de exclusivo; público designa o que é comum;

4) Público também é o oposto de privado, com sentido de autorregulado; pois público implica a existência de instituições,em construção de regras e normas.

Por isso a esfera pública, para cumprir sua função de intermediação, como intermediação, demanda a criação de bens públicos, demanda o desenvolvimento do aparato estatal.

A democratização do estado e sua consolidação em estado de direito,com a extensão do direito em direito social, operou a transformação da subjetividade jurídica do individuo em status coletivo; quando o estado social expressou a negociação entre sindicatos, grupos profissionais e organizações de interesse para construção de bens públicos, tornou-se possível uma ação pública do estado, que construiu bens coletivos/sociais e fundamentou-se a natureza pública desses bens.

Por isso o bem comum, tudo aquilo que não pertence a ninguém como o ar, a água, a esfera celeste, a cultura, as instituições, junto com o desenvolvimento da esfera pública e da constituição de um ethos público e coletivo constroem os nexos teóricos e práticos da noção de universalidade.

*Texto adaptado da palestra da Professora doutora no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Ana Luiza Viana, proferida na abertura do segundo Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, realizado de 1 a 3 de outubro, em Belo Horizonte (MG), pela Abrasco.