O DSM-V e a fabricação da loucura
De Fernando Freitas e Paulo Amarante*
Entre os dias 18 e 22 de maio, durante o congresso anual da Associação de Psiquiatria Americana (APA), foi oficialmente apresentada a nova edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM).
O DSM-V chega precedido por uma forte rejeição nos meios psi. Por todos os cantos do mundo estão aparecendo petições, chamadas ao boicote, declarações, artigos e livros publicados, assinados principalmente por especialistas, denunciando o Manual como uma obra “perigosa” para a saúde pública.
A questão de base é que o DSM-V, mais do que nas versões anteriores, fabrica doenças mentais; o que faz com que enormes contigentes populacionais passem a ser considerados doentes e, como consequencia, a consumir medicamentos psiquiátricos.
É bem verdade que as versões anteriores também vieram a público provocando controvérsias. Publicado pela primeira vez em 1952, com uma lista de menos de 100 patologias (de inspiração freudiana, assim como a edição de 1968), a cada nova edição um número maior de categorias de doenças mentais aparece. A edição ainda em vigor, o DSM-IV, apresenta 297 patologias mentais. Através da versão preliminar disponível na Internet desde 2010, estima-se que o DSM-V tenha um número ainda maior de categorias de diagnóstico.
Esse aumento crescente das categorias de diagnóstico sugere haver uma tendência inexorável da psiquiatria para transformar comportamentos e experiências do cotidiano em patologias mentais, o que tem sido objeto de crítica a cada nova edição que aparece.
Nos Estados Unidos, onde o movimento contra o DSM começou, um dos críticos mais contundentes é o próprio Allen Frances, o psiquiatra que dirigiu a edição precedente. O prestigioso Instituto Americano de Saúde Mental (National Institute of Mental Health, NIMH) se negou a ver o nome da entidade associado ao DSM-V. Esse fato político é da maior relevância, na medida em que o NIMH é o maior patrocinador da pesquisa em saúde mental em escala mundial. “Os pacientes que sofrem de doenças mentais valem mais do que isso”, justificou seu diretor, Thomas Insel, em um comunicado, explicando que o NIMH “reorientaria suas pesquisas fora das categorias do DSM”, devido ao fato da sua fragilidade no plano científico.
Na França, o combate vem se dando há pelo menos cinco anos, pelo coletivo Stop DSM , conforme noticiado pelo Le Monde em sua edição de 15 de maio último. Os profissionais que formam esse coletivo se insurgem contra o que eles chamam de “pensamento único” do Manual. Recomendamos a leitura do manifesto do movimento em sua versão em português.
Apesar da vultosa soma de dinheiro empregado para a elaboração do DSM-V, cerca de 25 milhões de dólares, o Manual parece deixar muito a desejar sobre o plano científico. Uma das principais críticas é que a sua lógica está mais do que nunca profundamente dominada pelos interesses da indústria dos psicofármacos. O conflito de interesses intelectuais parece estar hoje escancarado, conforme foi denunciado, por exemplo, por ninguém nada menos do que Allen Frances. 57 associações de saúde mental propuseram um exame independente, o que foi ignorado pelos formuladores do DSM-V.
Novas patologias têm sido sugeridas, algumas bastante bizarras, como por exemplo, a “síndrome de risco psicótico”. A propósito, Allen Frances tornou pública a seguinte observação, feita após uma conversa com um colega: “Esse médico estava muito excitado com a idéia de integrar ao DSM-V uma nova entidade, a ‘síndrome de risco psicótico’, visando a identificar precocemente transtornos psicóticos. O objetivo era nobre, ajudar os jovens a evitar o fardo de uma doença mental severa. Mas eu aprendi trabalhando nas três edições precedentes que o inferno está cheio de boas intenções. Eu não poderia permanecer em silêncio”. Essa patologia parece ter sido retirada da versão final.
Mas há outras patologias que parece que virão, como “transtornos cognitivos menores”. O coletivo francês Stop DSM, prevê que a perda da memória fisiológica com a idade irá se tornar uma patologia em nome da prevenção da doença de Alzheimer. Podemos bem imaginar numerosas pessoas com a prescrição de testes inúteis e custosos, e com medicamentos cuja eficácia ainda não foi de fato validada e cujos efeitos a longo prazo são desconhecidos.
Outro exemplo é a patologização do luto, com a ampliação dos “transtornos de depressão”. Quer dizer, após duas semanas de luto, com a aparência deprimida do enlutado será possível diagnosticar episódios depressivos maiores e com isso a prescrição de antidepressivos.
Finalmente, mais um exemplo: “transtorno de desregulação pertubadora do humor”. O que certamente levará a que banais cóleras infantis sejam transformadas em uma patologia mental.
Para concluir, mais uma outra citação de Allen Frances: “Quando nós introduzimos no DSM-IV a síndrome de Asperger, forma menos severa de autismo, nós havíamos estimado que isso multiplicaria o número de casos por três. De fato, eles foram multiplicados por quarenta, principalmente porque esse diagnóstico permite ter acesso a serviços particulares na escola e fora dela. Por conseguinte, ele foi colocado em crianças que não tinham todos os critérios”.
No Brasil, o 18 de maio é um dia que representa para nós o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, expressão nacional de luta contra todas as formas de violência, exclusão, mercantilização e medicalização do sofrimento e da vida cotidiana. Nós nos solidarizamos às dezenas de entidades que estão se manifestando neste momento frente à sede do Congresso da APA, em San Francisco, Los Angeles, USA. São usuários dos serviços psiquiátricos que se consideram “Sobreviventes do Sistema Psiquiátrico”, são os profissionais de saúde mental e de pesquisa, reunidos contra o DSM-V e sob a palavra de ordem Occupy APA in San Francisco. Queremos aproveitar a ocasião para lançar aqui no Brasil o nosso movimento BASTA DSM.
*Professores e pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde mental e Atenção Psicossocial (LAPS;ENSP;Fiocruz) e Diretores Nacionais da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Paulo Amarante é ainda Diretor do Cebes e da Revista Saúde em Debate.