O elo entre o vício e a prostituição

Correio Braziliense – 05/03/2012

A cada 10 viciadas, sete são mães. O uso do crack na gestação causa sérios riscos ao feto. Autoridades já discutem a possibilidade de políticas públicas para evitar a gravidez durante a dependência NotíciaGráfico

O aumento do consumo do crack entre mulheres e as consequências próprias do uso da droga no universo feminino acenderam o sinal vermelho de profissionais que lidam com o enfrentamento desse problema. A relação intrínseca entre o vício, a prostituição e a gravidez indesejada e, quase sempre, desprotegida, incentiva o debate sobre como evitar que mães dependentes da cocaína em pedra transmitam as consequências nocivas, às vezes letais, e perpetuem a compulsividade pela droga em seus filhos, que podem nascer com  síndrome de abstinência, entre outros problemas de sáude.

Uma das iniciativas que autoridades e especialistas começam a discutir é a possibilidade de oferecer às viciadas acesso a contraceptivos de longa duração, como as injeções intramusculares que evitam a gravidez por alguns meses ou até mais de ano. “Esse é um debate que se impõe em  função da gravidade que é a gestação entre as usuárias de crack. Será um tema ainda mais polêmico que a distribuição de kits com cachimbo para os dependentes, porque envolve questões de religião, de dogmas, de comportamento. Mas não dá para fugir do assunto”, afirma Mário Gil, subsecretário de Políticas Sobre Drogas da Secretaria de Justiça, que coordena o programa de combate ao crack do  Governo do Distrito Federal.

Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre o consumo do crack pelo universo feminino revelou que a maioria das usuárias são mães. Do grupo de mulheres dependentes, 71% tiveram entre 1 e 13 filhos. Algumas (16%) abortaram. Mas o conjunto daquelas que nunca engravidaram é muito pequeno, de apenas 13%, o que revela um quadro assustador. Assim, como se pode concluir a partir das informações do estudo coordenado pela pesquisadora Solange Nappo, quase toda mulher viciada em crack passa pela experiência da gestação.

Acostumado a lidar com dependentes em crack, o psiquiatra Augusto Cézar de Farias, que dirige o Núcleo de Saúde Mental da rede pública no Distrito Federal, diagnostica: “Pelo alto poder de compulsividade, o crack é diferente de muitas outras drogas. Destroi projetos de vida”. A maternidade é um desses planos que podem ficar comprometidos para sempre.

Do momento da gestação passando por todas as fases do desenvolvimento da criança e do adolescente, uma mulher escravizada pelo crack pode se afastar e, pior, exercer influência negativa na formação de seus filhos. “Quando usa o crack, o homem é um drogado. A mulher dependente é tratada como vagabunda, porque muitas vezes se prostitui para conseguir a droga. Fica marcada para sempre, mesmo quando consegue se livrar da dependência. Essa exclusão social produz efeitos com repercussão na família”, avalia a socióloga Camila Potyara, consultora da pesquisa sobre a População em Situação de Rua no DF.

Círculo vicioso
Coordenador do Departamento Técnico de Saúde Mental, Álcool e outras drogas do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori Kinoshita reforça a opinião da pesquisadora. “As pessoas têm mais preconceito contra as mulheres que usam drogas. Elas próprias se culpam muito”, afirma. Para Tykanori, as usuárias de crack estão no meio do caminho entre um passado de problemas familiares, decepções amorosas, frustrações pessoais, violência doméstica e um futuro ainda mais sem horizontes. “É um círculo vicioso”.

E é nesse contexto que o professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), Raphael Boechat, acha que o Poder Público deve interferir no sentido de evitar que as mulheres viciadas em crack estejam expostas a projetar suas mazelas em gestações indesejadas. “Criar políticas com alternativas para evitar a gravidez nesse grupo de risco é uma boa ideia”, sugere o psiquiatra. O debate já existe entre gestores do Ministério da Saúde. Uma das opções discutidas são as injeções capazes de interromper o período fértil da mulher por até dois anos nos diagnósticos mais dramáticos.

Com esse debate já iniciado, mas ainda incipiente, a Justiça determinou no mês passado a internação compulsória de uma adolescente no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB). Ela é viciada em crack e está grávida de quatro meses. Vai ficar internada até o nascimento do bebê.

Sintomas
A síndrome de abstinência neonatal (SAN) é verificada em recém-nascidos de mães dependentes químicas que tenham usado a droga durante o período de gravidez. No caso de mãe viciada em crack, a síndrome pode provocar no bebê sintomas como choro estridente, inquietude, irritabilidade, insônia, tremores, convulsões, suor excessivo, febre, sucção excessiva, regurgitação e diarreia, entre outros.